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14 novembro 2006

Manuel de Portugal

Uma homenagem a Henrique Penha Coutinho.


Henrique Penha Coutinho - Coimbra / 24.03.1979
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Carta escrita a Manuel de Portugal
em 11 de Abril de 1976


" Em verdade, em verdade vos digo:
não cantará o galo sem tu Me haveres
negado por três vezes."
Jo 13,18

== Evangelho segundo São Lucas ==

" e, no mesmo instante, estando ele ainda a falar, cantou um galo.
Voltando-Se, o Senhor fitou os olhos em Pedro e Pedro recordou-
se das palavras do Senhor."


Ouvi cantar um galo na madrugada de ontem, Manuel!
Lá longe... Muito longe da cama onde, estiraçado e mandando
às urtigas o cansaço de mais um dia de trabalho devorava o teu livro.
O livro de todos nós, Portugueses e Portuguesas deste nosso Portugal.
O livro que há-de ser, dos Portugueses das gerações vindouras, o símbolo
da resistência a estes anos de angústia.

Há muito tempo esperava a saída do teu livro, que esta coisa de ter gavetas cheias de recortes de jornais é incómoda e dá uma trabalheira dos diabos.

Calhou comprá-lo no dia 9 de Abril.
Casualmente coincidiu com La Lys. E à noite, já no quente,
iniciei o ritual da leitura, iniciei a batalha.
As notas explicativas entusiasmaram-me. E deliciaram-me também.
Julgava eu que ia recordar apenas aqueles pedaços de boa prosa com que nos tens brindado desde os fins de Julho, semanalmente, com pontualidade e que nos arrebatam, nos enternecem e nos animam em horas
de desespero, quando dei conta dessas "novas crónicas" que colocaste antes de cada uma das "crónicas já passadas".

Ao princípio marcharam umas e outras, lidas sofregamente na ânsia de recordar, aqui e acolá, alguns escritos que ficarão certamente na História das Letras Portuguesas, mas a partir de certa altura --
era já tarde e conhecida a prosa -- passei a dedicar maior atenção às notas prévias que, à maneira de introdução, em boa hora colocaste junto de cada crónica.

Foi então que ouvi cantar o galo aí para as bandas da Praça de Londres.
Passava já das duas da matina e tinha acabado de ler as quatro primeiras linhas da nota prévia de "Os párias".

Ouviste o galo, Manuel?
Ouviste-o cantar?...

Três vezes negaste, Manuel de Portugal! Tal como Pedro... E o galo --português do vinte e seis de Abril e progressista certamente-- acabou por cantar... Com vinte e tal dias de atraso, é certo, mas acabou por cantar... Na madrugada de 10 de Abril.


" ... fitando-o, disse: “Este também
estava com Ele”, mas Pedro negou-o,
dizendo: “ Não O conheço..."
Lc 22,56-57

Tinha terminado, há muito tempo já, o consulado gonçalvista quando o negaste pela primeira vez.
O estilo das crónicas e o da tua conversa falada achava-os eu semelhantes em demasia e, certa vez, disparei-te à queima-roupa se não serias tu o Cronista Mor destes anos alucinantes.

"Upa!... Upa!..." me respondeste, "Que não!" me disseste,
"O Manuel de Portugal tem muito mais categoria..." E desandaste.

A convicção das tuas palavras venceu-me e a frase que deixaste em aberto levou-me a outras paragens na procura de um autor.

Lembras-te, Manuel? Foi ali na 5 de Outubro, lá no alto de um 11ºandar, naquela noite em que topámos o Ramiro dos dentes a preparar, certamente, uma qualquer moscambilha com o camarada Emílio das
investigações científicas...

Marcava 20 de Novembro, o calendário.
Entre Ponte de Lima e Chaves, tinhas dado um salto à capital...


" Tu também és dos tais".
Mas Pedro disse: "Homem, não sou."
Lc 22,58


Meses mais tarde, depois daquela boca do Expresso, recebemos-te no Cenáculo, onde chegaste atrasado, com a amizade de algumas graças.

"Boa noite, Manuel de Portugal!"
"Não se brinca com coisas sérias! Essa notícia já foi desmentida no jornal."
Disparaste seco e foste ao trabalho. Sem mais conversa.
Breve sorriso embora tivesse perpassado no teu rosto...

Tímido e envergonhado, Manuel! Humilde em tanta grandeza não acreditavas ainda?!...
Embatuquei, pois não há dúvida que cada vez mais me convencia que eras, de facto, o Cronista. Escreves como falas -- "ao correr da pena, como sei, duma assentada" -- e ao falares sinto no mais pequeno pormenor, alguns pedaços de crónica.

Com que saudade me lembro da ternura que puseste no hino à boa gente do Norte de Portugal. Tinha vivido o Norte há pouco tempo e senti deveras cada linha que escreveste. Com que avidez a procurei, em vão, neste livro que tenho à minha beira.

Certamente não foi o Senhor Manuel de Portugal o seu autor!
...Confusão minha.

Em 19 de Fevereiro saíste com "Os Párias" para a rua.
Lembro-me de ter chorado. Sozinho à beira-rio onde procuro refúgio senti como ninguém o que, comovidamente, narravas a um Homem íntegro e honesto como poucos, sobre os Párias que de novo encontraste, não em Goa, "mas aqui, neste Portugal, onde em Janeiro de 35 nasceste".

Também eu nasci em 35 e em Janeiro. E na mesma Terra que nos tornou amigos.
Por isso gosto do Ramalho -- era assim que o tratávamos, Manuel. Sabias?! -- não por aquilo que ele é agora. Mas por aquilo que ele nunca deixou de ser.

O texto em que lhe falavas dos Párias impressionou-me por várias razões. Pelos
Párias, pela tua sensibilidade de autor, pela categoria com que está escrito. Mas impressionou-me principalmente porque me levava a pôr-te definitivamente de parte como identidade de Manuel de Portugal.

É certo que costumas vestir muitas indumentárias ( honny soit...) nos teus escritos,
o que fazes aliás com muito à vontade. Mas desta vez, não sei porquê, descri da minha convicção.

Pensei fazer uma última tentativa, dando-te a conhecer um ou outro pormenor
curioso sobre a vida desse comum Amigo saído General do 25 de Novembro.

Em 27 de Fevereiro, não fora a tensão em que caiu o Cenáculo após a intervenção
do fogoso Diniz de verde pinho, parecidíssimo, aliás com o Eanes e ter-te-ia fornecido os elementos que colhi. De qualquer modo ficaste conhecedor deles dez dias mais tarde.

Leste e viste, com uma atenção aparentemente desprendida, os elementos que mostrei.
E tê-los-ias achado curiosos e emitido a tua opinião mais abertamente se não estivesses e pé atrás, medroso de um deslize, jogando à defesa.

Tive, contudo, um cuidado. Só três pessoas tiveram acesso à informação que te prestei.
E duas delas não são cronistas, pela certa.

" Com certeza este também estava com Ele, pois até é galileu".
Pedro responde: "Homem, não sei o que dizes".
Lc 22,59-60


Reunia o Cenáculo em casa alheia e havia convidados.
De novo chegaste atrasado. Maldito trânsito o desta cidade mais a sua onda vermelha
que, por circunstância ou mau funcionamento, não há meio de passar a verde pleno.

De novo os cumprimentos amigos. E de novo a recusa em vestir o fato "alheio"...

Foi então que alguém arriscou:
"Como explicar então a semelhança de estilos entre o Andante, do Quarteto, e a
Crónica dedicada à boa gente do Norte de Portugal?"

"Bom, bom! Vamos trabalhar que já são horas..."

E antes que terminasses esta frase, Manuel, devia ter cantado o galo!...
Começava então a noite de 17 de Março, mas o galo -- progressista,
certamente -- só cantou no dia 10... Com vinte e tantos dias de atraso é certo, mas cantou!

Como soubeste, Manuel de Portugal?
Como pudeste adivinhar Amáticas frustrações no Lusitano Eanes?!
Renasceu em mim a esperança de saber quem és.

Julgo ter bastante desenvolvido o espírito de observação e de pesquisa.
Coisas da profissão e dos estudos que a ela conduziram.

Para mais, vi-me obrigado em tempos idos, entre duas frequências de Antropologia, a dedicar um pouco da minha atenção e do meu estudo à aquisição de breves noções sobre grafologia.

A leitura das palavras derradeiras que escreveste varreu-me qualquer dúvida
que restasse finalmente no meu espírito.

Três palavras imensas... que escreveste com teu punho, Manuel de Portugal!
Lembras-te, não é verdade?
E lembras-te, certamente também, de um documento (por ti assinado em
30 de Junho de 1975, bem antes de nasceres Manuel de Portugal) defendendo causa comum que com muita simpatia forneceste a um punhado de amigos?
Lembras-te, Manuel de Portugal?

Tenho esse documento arquivado.
A identidade dos caracteres é de tal ordem que nem seria necessário qualquer
conhecimento científico para concluir-se o que era já tão evidente.

Meu caro e Amigo Manuel de Portugal
Creio ter descoberto quem és e satisfeito fico por que não sejas nenhuma d
as figuras por quem tens sido tomado.

De qualquer modo, como Manuel de Portugal, ninguém te arreda já da Galeria d
e Honra da Literatura Portuguesa. Ganhaste a Torre e Espada das Letras Lusitanas em pleno campo de batalha, a mesma batalha que os bravos de Novembro levaram de vencida.

Daqui te saúdo, desta terra de ar lavado e de granito onde talhados foram Homens
Grandes que tanto tens exaltado.

Deus te guarde, Manuel de Portugal!

João de Castelo Branco

C.Branco - 11 de Abril de 1976












2 comentários:

Unknown disse...

sou a sobrinha do Manuel de Portugal, do lado da esposa, e gostaria de poder contactar com o senhor, amigo dele.
Caso possa e tenha Facebook, se me puder contactar através do mesmo, agradeço.
Senão, aqui fica o meu email:

rodrigues2ster@gmail.com

Grata pela atenção dispensada.
Boa noite e bom Ano Novo de 2014.

Isabel Reis Rodrigues

Anónimo disse...

Leio por estes dias Manuel de Portugal, com o interesse de avivar a memória e o prazer de encontrar vozes antigas que nos lembram dos desvarios dos tempos novos e dos tempos idos. Guardo em mim ecos do cronista pelos idos revolucionários e vários do Portugal da segunda metade de 70, e nele encontro o mesmo desassombro que me fez mergulhar de cabeça, sem avaliar o fundo do leito, no rio turbulento do pós-PREC, que, por idade minha ainda imberbe, e uma descolonização que me fez retornado pelo meio, não permitiu combater. Hoje, que os tempos andam de feição a processos revolucionários em curso, travestidos em activismos sem conta, encontro na leitura das crónicas de Manuel de Portugal novo fôlego para alçar o pau-de-marmeleiro da palavra combatente para combater ditaduras e seus acólitos modernos.