A Crónica de hoje, no “ Público”, a que deu o nome de Senhor Alzheimer fez “soltar as águas dos meus olhos”…
Graça Franco
Com a provável permissão de Graça Franco e do Director do Público deixo aqui algumas das linhas que ela guardou para hoje…
(…) Olho à minha volta e sei que não os conheço. Excepto a Rita. Uma morena esguia que sorri sempre. É bonita a Rita. Sei que se chama assim. Embora nunca consiga pronunciar-lhe o nome. É a língua que foge entre a dentadura e o céu-da-boca e se enrola nas letras. Rita nunca me sai. Chamo-lhe amiga. Amiga, sai-me sempre. Ontem virei-me para ela e saiu-me bem:- Então amiga? E ela: "Estou bem, pai. E o pai?"
(…) E ela, amável, como se eu lhe tivesse respondido que me sentia bem, continuou sorrindo, como sempre."Esta, pai? É a Inês, pai. Não se lembra...? Está tão grande pai, não está?" É curioso o facto de, à medida que o tempo passa, as medidas se tornarem tão importantes como o clima. Reservam-nos dois únicos tipos de conversa: o estado do tempo e o estado dos netos. Eles estão sempre "mais altos, não é?" e o tempo está sempre "mais frio, não está?" e esperam de nós um assentimento entusiástico do tipo: "Pois é!" Às vezes faço-lhes a vontade. E eles, felizes, pensam que não morri.
(…) Os netos são uma pequena multidão ruidosa, exactamente igual à dos outros miúdos. (…) têm em comum o facto de serem seres que ou me ignoram, ou fogem de mim. Às vezes, na pressa, tropeçam nas minhas pernas ou nos meus olhos. Então, murmuram, adiando a fuga, um apressado: "Bom dia, avô! (mesmo que seja noite!). Hoje, como é que está?" O hoje deve-se ao facto de não saberem como me sentia ontem e anteciparem que isso não lhes vai interessar amanhã. Excepto, claro, se voltarem a tropeçar em mim.
(…) Reconheço que não me esforço por os conhecer. Excepto um. Decidi que era filho da Rita, mas, se calhar, é filho de outra qualquer, da loiraça espampanante ou da matrona afogueada. Talvez nem seja meu neto. Pouco importa. Chamo-lhe Zé para dentro, mas, para fora, não lhe chamo coisa nenhuma, porque nunca me sai. Tem fraldas como eu, o que ajuda a nossa proximidade. Não foge de mim. Pelo contrário. Olha-me fixamente à espera de uma resposta qualquer. E não se cansa. Começa de manhã ao pequeno - almoço e, às vezes, pela tarde, ainda anda por ali. Noutro dia veio dar-me um chocolate! Gostei. Comi-o todo, enquanto ele espreitava pelo cantinho do olho a saboreá-lo também, como se, de repente, tivéssemos ido os dois à pastelaria comer um bolo. Ao Zé não lhe saem as frases como a mim. Parece que também não tem grande memória. Acho graça pensar que tem as gavetas do cérebro trocadas como as minhas…
No Verão andava ele à volta do lago e apareceu a Rita. E eu, aflito, gritei alto e bom som: "Cuidado com o lavatório!" Ela esperta ouviu e correu para o miúdo. Mas, ele, não me perdoou a traição. Olhou-me com a raiva que se reserva aos denunciantes. No regresso, atirou-me a língua de fora, à socapa. Apeteceu-me correr atrás do diabrete, para lhe agradecer a façanha de ter continuado vivo. Não queria vê-lo transformado em peixe. Foi então que tropecei nos próprios pés e se soltaram as águas. Não é novo. Passam a vida a soltar-se. Mas, dessa vez, foram as águas dos olhos.Ele apavorado começou a gritar: "O avô está a chorar!" Mentira. Soltar águas é outra coisa... mesmo as águas dos olhos. Mas não voltou a fugir. Ficou uns dias a cirandar ao meu lado e a limpar-me as águas da cara.
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(…) Sei que já não sou novo. Às vezes, encontro-me, cá em casa, com um outro velho que não conheço e me faz lembrar o meu pai, mais gasto e mais cansado. Já não tem conversa. Fica ali em silêncio a olhar para mim como se eu fosse um espelho. Não me arrelia. Dou comigo a pensar como será o mundo? O Zé é pequeno de mais para essas conversas. Mas o velho, coitado, não responde, deixa-me falar sozinho sem dar uma para a caixa.Mesmo nos dias em que se abre a janela do mundo há coisas que já não percebo. Tenho saudades de uma boa discussão sobre livros, sobre arte, sobre religião, sobre política. Até sobre mulheres. Um dia destes, deve ter sido dia de limpeza no cérebro e de repente abriu-se a gaveta das letras. Há muitos anos que não consigo ler. Foi desde aí que esqueci o meu nome: só sei que sou Pessoa. Ou melhor, tenho a certeza que já fui Pessoa, mas não me lembro se António, ou se Alberto. Fernando é que não, que esse também não sabia quem era, mas não era eu...Um dia destes consegui ligar as letras outra vez, quando vi na mesa da cozinha o Correio da Manhã. Num ápice vi, na última página, a foto de uns bombeiros a levar um morto embrulhado num lençol. Tinha um título a negro "Homicídio" e li, e percebi perfeitamente que havia um homem que tinha morto a mulher, ou o contrário. Uma mulher que tinha morto aquele homem, porque estava desesperada com a doença dele, ou dela, e depois vinha o meu nome... Alzheimer. Eu não era o morto, por isso não percebi por que falavam de mim.
Mas gostei de reencontrar o meu nome através do jornal. Alzheimer. Tenho a certeza que é isso que me chama todos os meses o doutor, quando se vira para a Rita para dizer que eu só preciso que falem comigo, e não fujam, porque "isso é muito melhor do que dar mais remédios ao senhor Alzheimer…
(Vale a pena ler o artigo por inteiro... que é de uma beleza imensa!)
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