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29 março 2007

As armas e os barões

Público
29 03 2007
Constança C.S.


Constança Cunha e Sá

(...)"Como algumas sondagens se encarregaram de mostrar, a ideia peregrina de que o salazarismo ressuscitou por obra e graça de uma maioria silenciosa e descontente não resiste às regras de qualquer estudo de opinião. Em contrapartida, floresce através do espectáculo e ganha um peso acrescido com a sua própria mediatização. Para além das deficiências do voto por telefone, sobra a indesmentível vitória de Salazar, numa espécie de eleição popular, onde a televisão dita as suas regras e cria a sua própria realidade. Desvalorizar essa realidade, por pouco rigorosa que ela pareça, é não perceber uma sociedade que se transformou num espelho do que lhe é apresentado diariamente pela comunicação social.
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Ao contrário do que tem sido dito, o carácter primário do exercício não o transforma automaticamente num acontecimento pueril que não merece o favor de uma análise ou o desperdício de uma crítica. Não é impunemente que a televisão, nomeadamente a televisão pública, elege Salazar como o maior português de sempre, espatifando de uma só penada o único interdito que tinha sobrevivido à Revolução. Nesse sentido, e como referiu, com particular lucidez, Eduardo Lourenço, o concurso da RTP, esse "mero" entretenimento foi, de facto, "a morte simbólica do 25 de Abril".
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Houve quem visse neste resultado um voto de protesto contra as deficiências da democracia e o irremediável atraso em que vive o país. (…) Para outros ainda, é a confirmação de um lamentável sistema de ensino que dificulta o conhecimento da História e das suas principais personagens. Tudo isto poderá explicar, em parte, o significado de uma votação que contraria as certezas da Revolução e põe em causa os valores do 25 de Abril.

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Não convém subestimar a ignorância em que viceja o sucesso de qualquer concurso televisivo. Mas a verdade é que, há muito, que os nossos heróis deixaram de ser o que eram. Num país que não se distingue pela arte ou pela filosofia, os heróis que existem são essencialmente os heróis da expansão ultramarina: os precursores do império, os que se aventuravam para além da "Taprobana", os que deram "novos mundos ao mundo", os que, ali, ao leme, representavam um povo que queria "o mar que é teu".
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Durante séculos, festejámos a saga dos Descobrimentos, a astúcia de D. João II, os horizontes do Infante D. Henrique, as caravelas de Vasco da Gama e a epopeia de Luís de Camões sobre "as armas e os barões assinalados".
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Se o 25 de Abril associou esta saga à propaganda do Estado Novo, limpando os manuais escolares de qualquer aventura imperial, o "fardo do homem branco" e o remorso do colonialismo fizeram o resto, deixando-nos um passado limpo de heróis e dos seus feitos gloriosos.

(…) Ainda há pouco tempo, uma sondagem (que resplandecia rigor científico) revelava que a maioria dos portugueses gostaria de ser... espanhola.

Jornalista

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