Páginas

13 maio 2009

O Mané dos Padres

Há já uns dias, a D.Madalena Paiva Brandão enviou-me um Conto que o Avô, Dr. Jorge Seabra teria escrito por volta de 1950. É o único manuscrito que possui de entre os "papéis" que, por herança, lhe foram parar às mãos.
Como se pode ver, "O Mané dos Padres" tem o cunho de todos os contos que o autor escreveu e publicou em vários jornais do Distrito de Castelo Branco com uma linguagem acessível e um humor sibilino tão seu característico.
Não se sabe se teria sido publicado quer na Reconquista quer no Jornal do Fundão.

Dr. Jorge de Seabra

"Olá.

Gostei imenso da fotografia de Castelo Branco com a casa onde morou o meu Avô. Estou a planear uma ida a essa terra onde nunca estive, mas que faz absolutamente parte de mim. Aliás não percebo como é que nunca o meu Avô procurou dar a conhecer a sua Castelo Branco aos netos, nem percebo como é que eu nunca tive vontade nem curiosidade de lá ir! Mistérios...
Hoje mando-lhe a transcrição do único manuscrito que tenho do meu Avô, desconhecendo se foi publicado ou não. É de cerca de 1950 e chama-se «O Mané dos padres». Espero que goste.
.
Madalena "
.
Vou deixar aqui a transcrição do conto, devidamente "traduzido" pela D.Madalena.

O MANÉ DOS PADRES, por Jorge de Seabra (1893-1981)
.
"Castelo Branco, como de resto todas as terras deste abençoado «jardim à beira mar plantado», era, aqui há uns 40 anos atrás, um autêntico alfobre de tipos populares. E já que estamos com a mão na massa, evoquemos, em duas descoloridas penadas, um deles – o célebre Mané dos Padres, desaparecido há longos anos e que eu muito bem conheci nos meus inesquecíveis tempos de rapazito com o sangue na guelra.

Mas Mané dos Padres, porque carga d’alhos? – perguntará um dos meus indulgentes leitores.
.
Naturalmente porque lidava com clérigos, com padres, visto ser sacristão da Misericórdia e zeloso guardião da casa que os jesuítas do Colégio de São Fiel possuíam para os lados do castelo e que servira de pousada aos alunos do dito Colégio quando, no fim do ano escolar, vinham a C. B. fazer os seus examezitos no Liceu.
.
Gordo – duma gordura balofa e doentia – e extremamente bondoso, não havia cerimónia religiosa, da missa com sermão à mais garrida procissão, em que ele não metesse o doutíssimo bedelho, acolitando, dirigindo ou enfeitando os altares, acendendo as velas... E com que saudades eu não estou a rever à porta da Misericórdia Velha ou da Sé, estendendo a sua opa branca e de cabeção encarnado, se porventura se tratava da procissão do Coração de Jesus, ou roxa se respeitava as cerimónias da Semana Santa!...
.
É claro que o nosso Mané dos Padres, a quem, por direito próprio e como infatigável sacristão, estava afecta a organização das muitas e variadas procissões, via-se, por vezes, em sérios apuros para conseguir pessoal suficiente para o transporte de andores, guiões, pálio, etc. Porém, porque tivesse sempre Deus a ajudá-lo, nunca, que eu me recorde, deixou de sair uma procissão por carência de pessoal, e que ele, com faro apurado ia recrutar no seio da Briosa do Liceu. E uns momentos antes da saída do préstito religioso, aí o tínhamos nós a contas com os estudantes que se achavam pelas cercanias do templo e a dizer-lhes solícito: Então, snr. Académico, vamos lá à procissãozinha, ou quê? E a rapaziada, sempre amável, acudia pressurosa à chamada, libertando-o do pesadelo.
.
... Ora uma coisa com que o nosso Mané dos Padres podia contar sem evitar, nas ditas procissões, era com a condução do pálio e a cujas varas, em número de 6, pegavam outros tantos estudantes do Liceu, quase sempre os mesmos, e que vinham a ser, além do rabiscador destas desarticuladas tretas, o Augusto Nacho, rapaz alegre, proprietário da mais pujante, farfalhuda e encaracolada cabeleira que tenho conhecido e que morreu, muito novo, funcionário da Compª de Cºs de Ferro; o Vaz Gomes, dono doutra cabeleira farta e encaracolada, hoje engenheiro suponho que em África; o Pinto Ferreira, rapaz inteligente e agradável, que residia no Campo do Esp. Santo, e há muito desaparecido do mundo dos vivos; o Artur Osório Machado, moço muito culto, também já com Deus, e o Alv. T.res Ag. dos Santos, sempre bem disposto, alegre, com pena pª a caricatura, e actualmente professor distinto da Escola Compª Colonial, na Júlia (?) Amado. E à hora marcada para o saimento do «préstito», aí estávamos todos, trajando impecavelmente a tradicional capa e batina, de luvas brancas e colarinhos a enfunarem de goma, à porta da Sé ou da Misericórdia Velha pª a ornada (?) da praxe. Mas, na tal pegadela do pálio, a distribuição das varas não se fazia à toa, ao calhar... Não, meus amigos. Aquilo era ali feito com todos os matadores (?) e por forma a colher-se o máximo esplendor, a máxima tesura (?)... E, nesta ordem de ideias, e pª abrir caminho, iam à frente a[s] belezas..... (?) o Augusto Nacho e o Gomes, de cabeleiras encaracoladas e bigodes à Kaiser, de guias verticais como fios de prumo, seguindo-se-lhes os restantes, os menos abundantes em melenas e bigodes. Tudo ali marchando ao som duma marcha harmonicamente bufada pela Banda dos Bombeiros Voluntários, regida com élan pelo palaciano Maestro Cifuentes... Enfim, um autêntico delírio em que servíamos a Deus e os nossos... corações, a baterem, a 90 à hora, pelas loiras e morenas que, debruçadas das janelas e sacadas das ruas das Olarias, Ferreiros e da Josefa Maria, nos aguardavam ansiosas e meiguinhas.
.
Mas a juventude do velho Liceu não se limitava nas procissões efectuadas na vetusta cidade dos Templários e que, na roda do ano eram umas 6 ou 7, a empunhar, com galhardia, as varas de pálio. Não. Por vezes, e quando o nosso incansável e solícito Mané dos Padres se via em palpos de aranha por falta de pessoal, também sabíamos ser gentis, conduzindo com alma os andores, por exemplo, do nosso taumaturgo Santo António, da Srª das Dores ou ainda do S. Luís, Rei de França...
.
E já que veio a lume falar de S. Luís, monarca da velha Gália e inimigo figadal dos infiéis, vai lá mais meia dúzia de linhas, pª arrelia dos meus dois leitores.
.
Aí por 1908 ou coisa que o valha, na véspera da procissão das Cinzas, que saía da igreja da Misericórdia e metia uma infinidade de andores, por sinal muito pobrezinhos e sem valor artístico, da Srª das Dores, S. Francisco, Bem-Casados, S. Roque, o das canelinhas(?), São Luiz, etc. – o Mané dos Padres, que não costumava deixar os seus créditos por mãos alheias, resolveu abordar quatro escolares do Liceu: P. Cardoso, hoje médico municipal em C. Branco e um velho amigo, Alfredo Morais, falecido ainda estudante em Coimbra, M.el da Fon.ca Ribeiro e Sousa, também já com Deus e este seu criado, que a má sorte fez cronista-mor destes ...reinos – fazendo-lhes ver, bem como a suas famílias, a necessidade imperiosa da condução do andor do S. Luís... É claro que o pedido, como não podia deixar de ser, foi logo ali aceite com a maior dos alvoroços, sabendo-se de antemão que o dito S. Luís havia sido um rei tirado das canetas, amigo do seu povo e intrépido batalhador dos profanadores do Santo Sepulcro.
.
E no dia da procissão, das mais curiosas que então se realizavam em C. Branco, os 4 moços ......dados(?), todos enluvados, de capa e batina e marrafório devidamente empastado, lá estavam à porta da Misericórdia, a fazer a vontadinha do Mané dos Padres e aptos a carregar, d’alma ardendo em brasa, com o andor do S. Luís...
.
Que triunfo, que tentação tudo aquilo, meus senhores! Confesso que nunca me senti tão feliz e importante como naquela ocasião! E depois, aquelas benditas pequenas – loiras e morenas – tão derretidas a olharem para nós – e nós, todos babados e derretidos, a olharmos pª elas, que delícia, que tanta maravilha... Nem o primeiro dinheirinho que ganhei me soube tão bem! E dada a ornada(?) da praxe e recolhida a procissão, toca a colher os louros de tão famosa como delirante peregrinação, recebendo-nos de braços abertos, não só o bonacheirão do Mané dos Padres, como ainda as nossas famílias, um tanto envaidecidas pela retumbante figura que havíamos feito, carregando ali à preta(?) com o andor do S. Luís – por certo meio caminho andado para se nos abrirem, de par em par, as portas do céu...
.
Ainda me recordo que a Dona Matilde Ribeiro, senhora da máxima respeitabilidade, muito idosa, baixinha, surda como uma porta e Tia-avó de um dos transportadores do S. Luís – o saudoso M.el F. R. e Sousa – nos recebeu no final da festa, na sua casa da R. dos Ferreiros, mimoseando-nos com um principesco lanche, metendo farta doçaria e vinhinhos dos mais preciosos e tentadores, não se esquecendo a simpática velhinha de inquirir como tudo tinha corrido, se o S. Luís era pesado ou leve, etc. Enfim, um autêntico triunfo!
.
Decorridos muitos anos, tendo eu ido a C. B., terra onde nasci e que nunca esqueço, lembrei-me, ao passar pela velha Misericórdia, de entrar a ver se topava por lá com o S. Luiz. Queria ver o S. Luís, porque procedendo assim, recordaria, ainda que por fugidios momentos, não só a minha já longínqua mocidade, como ainda o dia, o inesquecível dia em que, todo garboso, louro e solene, carregara com ele às costas pelas ruas da vetusta «Albi-Castro».
.
Mas o famoso Rei de França, fechado a sete chaves, num colossal e bolorento armário, para os lados da sacristia, - não se dignou aparecer. E triste e absorto, não desisto apesar de tudo de comunicar com o monarca das Gálias, feito santo pela sua bondade e grande pancadaria nos lombos dos infiéis. E nesta ordem de ideias e com o coração a retorcer-se dentro do peito, tomo fôlego e resolvo bater, fortemente, com os nós dos dedos, no arcaico armário, a fim de arrancar o simpático ornamento da corte celestial umas ligeiras impressões...
.
- Quem fala daí? – diz em voz roufenha e sumida o S. Luiz.
.
- Daqui fala o Seabra, aquele loiro – hoje branco – de nariz em rampa e que transportou Vossa ilustre Santidade, juntamente com mais 3 colegas, através das ruas da cidade, aqui há uns 40 anos a quando a procissão das Cinzas...
.
- Ora viva o nosso Seabrinha! Então o que é feito de si que o não vislumbro há um ror danos!
.
- O mesmo digo eu que vim aqui de propósito pª o ver e abraçar e acho-o escondido no fundo dum bolorento armário...
.
- Então o que quer você, homem de Deus!... A procissão das Cinzas já não se realiza e os meus manto e coroa já estão nas últimas... Depois, velho e caquético como estou, não me apetece arejar por aí fora...
.
- Pois olhe, S. Luiz, agora é que era cirandar, plainear(?), gozar por essas avenidas da cidade nova, que estão um amor, nada se parecendo com as estreitíssimas ruas dos Ferreiros e de Stª Maria, e por onde o levei aos ombros há muitas décadas... por desconto dos meus pecados...
.
- E dos seus companheiros de andanças comigo ao colo, o que me diz você? – prossegue o santo franco um tanto curioso.
.
- Digo-lhe que o P. Cardoso está pletórico de boa saúde e médico cá no burgo e os restantes – Manuel da Fonseca e Alf. Moraes – já estão com Deus, a pedir por nós!
.
- Oh! Que pena! Tão novos e já no outro Mundo.
.
- Pois é!
.
- E do Mané dos Padres, o que me conta o meu Amigo? Não o tenho sentido aqui pela sacristia!
.
- Morreu há muito e dele apenas resta uma terna saudade.
.
- E agora para fechar – pois tenho aqui o S. Roque a puxar-me por uma perna – diga-me o meu caro Seabrinha, com o coração nas mãos, se aquela célebre passeata em que carregou comigo aos ombros, a motivou a sua devoção por mim ou o desejo de catrapiscar as pequenas por essas ruas fora!...
.
- Não me diga uma cousa dessas que derranca a alma, querido S. Luiz!... As pequenas olhavam é certo para nós, mas nunca, durante a procissão, o meu coração deixou de estar com Vossa Santidade.
.
- Bem, bem... "
.
.
Escrito por volta de 1950 e "traduzido" para letra de forma com um enorme "profissionalismo" que está patente em algumas frases de difícil leitura no manuscrito.

Nota: Quando cita "P.Cardoso", médico municipal, Jorge Seabra deve querer referir-se ao Dr.Pedro (Geraldes) Cardoso que aqui referi há uns tempos atrás.

1 comentário:

Luci-Souza disse...

Boa noite, Voce tem outros escritos do seu avô? Conheci "O Mané dos Padre..." há uns dois anos nesta publicaçao e hoje resolvi busca-lo para nova leitura. É um texto saboroso. Poderia publicar outros. Existe algum link para outros textos dele? Grato.