A GRIPE E OS HOMENS ...
Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisanas e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
António Lobo Antunes
Nascido em Lisboa, em 1 de Setembro de 1942. é licenciado em Medicina com especialização em Psiquiatria.
Actualmente vive em Lisboa, mas já não exerce medicina, dedicando-se em exclusivo à escrita.
Em 2007, é-lhe atribuído o Prémio Camões, o mais importante galardão literário de Língua Portuguesa.
4 comentários:
ele é um génio vivo e muito pouco amado por muitos ; mas o mais terrivel, para ele decerto, é o não o compreenderem e ele se irrita, deveras, com isso. bem escolhido o seu poema aqui. ja o estou a seguir.
Admiro este poeta e romancista que burila a palavra com a mestria de uma rendilheira, de um escultor, mas por vezes excede-se. Para o bem e para o mal...
Aquele comentário sobre a guerra colonial, onde afirmava que se matavam velhos e crianças só para ganhar posição para uma situação menos perigosa, num posto menos avançado, foi infeliz.
Nem como metáfora se pode aceitar.
Massacres houve-os, como o de Wiryamu (Moçambique), contudo foram apenas excepções a uma regra ...
Também lá estive, fui acusado de um crime terrível: «prática de voo em ambiente não vislumbrado...»
Nunca soube o que isto era. Mas toda a vida fui perseguido por isto: havia interpretações ao sabor de cada um...
Ainda hoje jaz no EMGFA o meu pedido de inquérito aos factos que estarão por trás deste diagnóstico!!!
Sou um fã de ALA
Não conhecia este poema!
Só Lobo Antunes!...
Hiperbólico, talvez, como diz um amigo aqui da blogosfera! E eu até me sinto inclinado a concordar com ele!
Mas António Lobo Antunes é um escritor fora de série, sem dúvida.
Lobo Antunes é um nefelibata inato e a forma introspetiva com que aflora quase todo o tipo de temas faz com que a sua escrita ganhe asas de águia em voos rasantes sobre altas montanhas: se o céu é o limite, há muito que ultrapassou a exosfera. A sua escrita é como que a linguagem no seu estado mais puro, a linguagem do pensamento...mas há um problema, é que nas camadas exteriores o ar é mais rarefeito e a dificuldade em respirar é tão fremente que corre o risco de não ser compreendido.
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