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12 janeiro 2007

Três histórias sobre a cor

É bonito o texto que a historiadora Drª Carla Machado escreve hoje na sua coluna semanal do “Público”, sobre a eleição de Francis Obikwelu como o Atleta Europeu do Ano.
Um “herói europeu”, para um miúdo de seis anos, um “senhor que tem o poder da corrida”, para a Matilde, uma menina de quatro ou cinco e um “símbolo de que me orgulho”!... para a Mãe da Matilde, a autora do artigo.

Historiadora Carla Machado


Com a devida vénia à autora do texto, acho que vale a pena reproduzir alguns excertos do artigo que é composto por três pequenas histórias.
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Da História n.º 1
(…) Na casa do Luís habitava a Rosa, empregada e avó emprestada de quem o Luís conhecia o colo, os sabores da comida e o aconchego das histórias. Para todos, a Rosa era a avó do Luís, a quem a vida tinha roubado as outras. Um dia, no final das aulas, o Luís, então com seis anos, vendo a avó a chegar, correu para ela, exclamando para os amigos:
"Tenho de ir, a minha avó veio buscar-me e vai-me levar às compras com ela!"
No dia seguinte, os amigos rodearam-no, riso fácil e trocista a atacar:
"É tua avó, aquela preta? Tu és burro ou quê, ela pode lá ser tua avó!"


(…) para o Luís, a cor das pessoas era fruto do acaso e nada tinha a ver com a relação que com elas estabelecemos. (…) uns nasciam brancos, outros negros, outros mulatos e outros amarelos, de forma tão aleatória como aquela com que se distribui a simpatia, a timidez ou a curiosidade.”
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”Da História n.º 2;
(…) Há alguns meses a Matilde (filha da autora com dois anos) trouxe para casa fotografias da escolinha, que mostrava cheia de orgulho a todos os que nos visitavam. Um dia, numa destas sessões, alguém lhe perguntou:
"E esta aqui, mulatinha, quem é?"
A Matilde parou, franziu o sobrolho, olhou de lado (sinal de estranheza) e, um pouco irritada, respondeu:
"Essa é a Lili; é a minha "indicadora". Isso que tu tás a dizê, eu não sei o que é!"

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Da História n.º 3, ainda da Matilde, um pouco mais velha:
"- Mãe, de que cor somos nós?
- De que cor como? O que queres saber?
- Mãe! [condescendente] De que cor?! A Rita, da minha escola, é cor de chocolate; e eu, de que cor sou?
- Tu és branca - disse eu, sem grande certeza de que essa fosse a resposta mais certa.

- Oh, mãe, mas eu não sou mesmo branca, pois não? Não sou como a neve; sou um bocadinho cor-de-rosa, "tás a ver aqui? [diz, apontando o braço] Eu gosto mais de cor-de-rosa, pode ser?"
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(…)”Francis Obikwelu foi eleito o atleta europeu do ano. Postas de parte as análises sobre o mérito do atleta e o fascínio exercido pelas corridas de 100m em que se revelou exímio, há a sublinhar, em tempos tão propícios aos discursos da exclusão, o significado simbólico de um negro encarnar o melhor da Europa. Para o Luís, tal como o imagino, Obikwelu é, sem qualquer hesitação, um herói europeu.Para a Matilde, é um senhor que "tem o poder da corrida".Para mim, que já não consigo desaprender a lente da cor, Obikwelu é, com certeza, também tudo isso. Mas sobretudo, enquanto atleta europeu do ano, um símbolo de que me orgulho. Não tanto pelos seus feitos - que o engrandecem essencialmente a si. Mas porque a sua eleição traduz algo da minha Europa imaginada. Negra, também, com certeza. Ou, como diria a Matilde, colorida, como todos nós.

Lá que é bonito...é!! O que não é bonito são as "belas vistas" semeadas por esse paíz fora...

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