Amílcar da Silva Ramada Curto (1886 - 1961)
"Escritor português, natural de Lisboa, que se distinguiu sobretudo no género dramático. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, aproveitando a sua experiência forense em muitas das obras que escreveu. Republicano, participou na revolução de 1910 e foi eleito deputado constituinte em 1911. Foi membro do Partido Socialista Português e ministro das finanças e do trabalho. Foi colaborador e director de vários jornais, mantendo uma crónica semanal no Jornal de Notícias do Porto."
Lembro-me perfeitamente dos seus deliciosos e contundentes escritos, em meados da década de 50, numa coluna do vespertino “Diário de Lisboa” que tinha o nome de “O preto no branco”.
Foi também um excelente advogado no foro lisboeta, além da sua actividade como escritor e político
Um dia, farto de viver da fama, fez uma reclamação à Ordem dos Advogados
Eis a cópia dessa carta dirigida pelo autor à O.A. de então:
Excelentíssimos Senhores
Amílcar Ramada Curto, advogado nos auditórios da Comarca, com escritório na Rua Nova do Almada, 59-2º, vem reclamar contra a colecta de taxa e meia em que V.Exas. resolveram colectá-lo, certamente na melhor das intenções, mas com inteira deficiência nas informações em que basearam a sua resolução.
Efectivamente, o reclamante tem no foro português uma modestíssima situação em proventos.
Reconhece o reclamante que tem um apelido em que não há concordância gramatical e que, talvez por isso, fixando-se com facilidade esse contra senso na opinião pública faça com que o seu portador goze de uma relativa popularidade. De resto esse erro de gramática passou-se na política, no Governo, no Foro e até, ultimamente, como fazedor de autos e comédias. Daí deriva, talvez, uma das razões que levou V.Exas. a errar.
Mas, exactamente, essa dispersiva actividade do reclamante, deu como resultado o seguinte: - O reclamante tem muito pouco que fazer, tem uma advocacia pobre, em que há muita "assistência", muita "borla", como nos teatros, derivada da fama, aliás merecida, de que o reclamante tem muito bom coração e, em suma, é socialista. Exactamente, Ilustres Confrades, esta última pecha de socialista, afasta do escritório do reclamante a classe que pode pagar. É natural. Uma profissão que vive, em grande parte, em defesa dos interesses e Instituições em que se baseia a orgânica social, a Propriedade, o Comércio, a Banca, a Indústria, dificilmente pode ser exercida por uma pessoa publicamente dissidente de todas as instituições.
Compreenderia alguém que, no extinto regime, a Casa Real autorizasse um comerciante provadamente republicano, anunciar-se como seu fornecedor ou sequer lhe consumisse géneros? Ainda mesmo que os géneros da sua loja fossem sensivelmente da melhor qualidade que os de outras lojas vizinhas, nunca a Administração Palatina cairia em tal contra senso que importaria uma transacção deprimente.
Aplicando à hipótese sub-judice o mesmo raciocínio, poderão V.Exas. constatar que o reclamante não é fornecedor da Casa Real, quer dizer, não é advogado de Bancos e Companhias.
Ou, por ser inteiramente verdadeiro, há um Banco com o qual o suplicante tem, mas só de vez em quando, um lucrativo contrato. É o Banco dos Réus. E "só de vez em quando" porque, esse mesmo, tem os seus especialistas com avença.
Quanto a Companhias, tirando a das águas e Reunidas de Gás e Electricidade, com quem o reclamante tem as relações de consumidor, as únicas Companhias que lhes aproveitam às vezes os seus serviços, são as Companhias Dramáticas, e essas não lhe pagam.
De sorte que a situação do reclamante como profissional do Foro é sui-generis. O Limoeiro tem os seus fornecedores especializados e a Rua dos Capelistas os seus fornecedores predilectos. Em nenhuma destas posições se encontra o reclamante mal com os homens por amor de El-Rei e mal com El-Rei por amor dos homens, segundo um exemplo ilustre de advogado.
Ora, se V.Exas. ponderarem os nomes ilustres que tem colecta inferior ou igual ao reclamante, e na situação pública de advogado de Companhias, de Câmaras Municipais, do Alto Comércio e da Alta Banca, e até quase da Cúria Romana que os assim colectados ocupam, e se compararem com a modesta situação do reclamante, que não tem a compensá-lo a falta de tais fregueses, a clientela habitual do Limoeiro, V.Exas. reconhecerão que, pelo menos a meia taxa é exagerada.
A menos que, o que seria extremamente lisonjeiro, o critério de V.Exas. tenha obedecido ao reconhecimento da situação profissional do reclamante e da injustiça que ela representa em relação aos seus méritos, e procurem por outra forma indirecta recomendá-lo à atenção dos bons clientes, pondo-o numa situação de relativo destaque.
Simplesmente, se assim é, e sem deixar de agradecer as atenções o reclamante pondera a V.Exas. que, como reclame, é talvez caro.
Faz estas reclamações o reclamante, sofrendo do seu orgulho. Se as não faz em tom de carpideira é ainda por aprumo e porque lhe ficou este geito da sua vida de comediógrafo que foge às apóstrofes violentas.
Ninguém tem mais pena de que isto assim seja do que ele próprio. Mas é assim. As suas razões têm o zelo irrefragável da verdade.
Mandem V.Exas. averiguar pelos cartórios e perguntem ao Comércio da Capital e terão a confirmação do facto.
Há um provérbio persa que diz que o Criador Ormuz marcou as criaturas com a mesma letra ao fabricá-las. A qual letra é um F. Em persa simplesmente esse F tem três significações:
A primeira é esta:
Faço-te. O Povo (!) que tem esta letra com esse sentido marcada no seu destino, tem a vida feita e escusa de se ralar; esses devem pagar todas as taxas.
A segunda significação é esta:
Faze-te. É o caso do reclamante; cansadamente, com o suado esforço, lá se vai fazendo. Devo pagar uma taxa.
E como não interessa a terceira significação da letra à presente reclamação e o reclamante não saiba o suficiente de persa para a poder traduzir, só o que lhe parece é que esses, a quem coube essa significação, não devem pagar taxa alguma.
V.Exas,, meus ilustres Colegas, ponderarão a sinceridade e a triste verdade desta reclamação.
Se o reclamante não for atendido, nada mais lhe resta do que curvar-se, mas com a consciência de ter sido vítima de um erro de apreciação.
E respeitosamente se assina,
a) Amilcar Ramada Curto
Nota - Presto de novo a minha homenagem ao Amigo que foi o Dr.José Martins do Soveral Rodrigues por me ter "fornecido" um pouco da sua prodigiosa memória e alguns elementos escritos que teve a bondade de me disponibilizar, conhecendo ele o prazer que eu tinha em "escrevinhar" tudo o que ele nos dizia no decorrer de tantos almoços que fizemos juntos.
12 janeiro 2007
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