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02 novembro 2019

Tudo menos fingir...

... podia ser o título do artigo que
João Miguel Tavares 
escreveu esta manhã, dia 2 de Novembro,
no jornal "Público
e ao qual deu o nome de
"Quão gago pode ser um deputado?"
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João Miguel Tavares
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"A resposta é: pode ser tão gago quanto Joacine Katar Moreira, desde que não seja o único deputado do seu partido. A palavra “parlamento” vem do francês “parler”. Significa falar ou discursar. Não há democracia sem debate, e não é possível debater num Parlamento sem um mínimo de fluência discursiva. Se Joacine pertencesse a um grupo parlamentar haveria sempre outros deputados disponíveis para discursar em plenário, e ela poderia dedicar-se a escrever propostas de lei, definir orientações estratégicas ou preparar os discursos dos outros. Não existindo mais ninguém, as suas intervenções na Assembleia da República são triplamente absurdas: para ela, que deve sofrer horrores com aquela exposição; para os restantes deputados, que nem sabem para onde olhar quando ela fala; e para jornalistas e eleitores, que não percebem nada do que ela diz.
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Escrever isto é duro e é cruel. Resolvi fazê-lo por duas razões. Em primeiro lugar, porque se não o fizesse estaria a ser profundamente complacente com uma mulher que, pelo seu percurso de vida, pelas suas capacidades e pelo seu esforço ganhou o direito a ser tratada com a máxima exigência e honestidade intelectual. Joacine não merece que eu tenha pena dela, nem que adopte um registo paternalista para silenciar aquilo que é um manifesto desastre. A deputada do Livre demorou 60 segundos a fazer as saudações iniciais (“senhor presidente, senhor primeiro-ministro, membros do executivo e senhores e senhoras deputadas”) e gastou quatro minutos e meio com uma intervenção de meia-dúzia de frases. Dizer isto é humanamente desagradável; não dizer isto é politicamente inaceitável. Se queremos um país mais exigente e um Parlamento mais qualificado, temos de começar por admitir que os princípios da inclusão e da tolerância não significam que tudo passe a ser magicamente possível, só porque esse é o nosso mais profundo desejo.
Joacine disse uma excelente frase quando foi ao programa de Ricardo Araújo Pereira: “Eu gaguejo quando falo, não quando penso. O perigo na Assembleia é os indivíduos que gaguejam quando pensam.” Mas mesmo para esta formulação ter força retórica, ela precisa de ter um mínimo de fluência quando é proferida – coisa de que Joacine foi capaz na televisão, mas não no Parlamento. Claro que se pode argumentar que ela estava nervosa na estreia, e que em futuras intervenções talvez a sua gaguez diminua para níveis aceitáveis, como já aconteceu noutras ocasiões. Espero sinceramente que isso aconteça, ou que o próprio regimento da Assembleia da República passe a permitir que ela tenha um porta-voz – tudo, menos fingir que o que se passou é razoável, porque isso seria compactuar com uma fraude intelectual autoimposta, e com uma actividade política desprovida de qualquer racionalidade, em nome dos bons sentimentos.
Essa é a segunda razão para este artigo. Joacine Katar Moreira tem sido apresentada como mulher, negra e gaga, como se o seu corpo fosse apenas uma urna de desvantagens sociais e existenciais, no qual fomos convidados a depositar o voto em nome de um Portugal mais justo. Esta redução do deputado a um símbolo crístico limita o eleitorado ao papel de pietà: não há fala nem debate, porque basta o silêncio contemplativo perante uma terrível injustiça. Aquilo que as pessoas defendem e argumentam deixa de importar. As chagas do corpo são o programa político. Este é um tipo de política que mata a boa política, desde sempre feita de debate, confronto, compromisso e negociação."

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