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20 março 2016

Uma tarde no "Central"...

...em Julho de 1972.
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Esta "Crónica" surgiu há dias à minha frente quando decidi "abater" muitas das coisas antigas que preenchem todos os cantinhos do meu escritório... Não tive a "coragem" necessária para enviar este "escrito" para o local onde seguiram tantas outras "recordações" daquela época...
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Não chegou a ser meu aluno tão somente porque resolveu seguir para a alínea e) de Economia, no 3.ºCiclo, enquanto eu, então, apenas me preocupava (e "lhes dava cabo da cabeça"...) com os alunos que seguiam para Ciências, na alínea f). Mas, apesar disso, tivemos alguns "contactos" curiosos que não podemos esquecer, passados mais de 45 anos.
A escrita do Zé de Matos passou a ter muitos leitores naquele jornal. Não sei se chamado pelo João Lúcio ou mesmo pelo próprio Director Guilherme Faria, o antigo aluno do nosso Liceu escreveu algumas crónicas cheias de interesse n' O Setubalense". Com 18 ou 19 anos e ideias que se inseriam num esquema de mudança que por aquela altura se vislumbrava, o José de Matos nunca deixou de ser um bom aluno que se interessava pelos problemas sociais que afligiam a sociedade setubalense. 
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É uma dessas crónicas que me atrevo a reproduzir hoje.
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José de Matos

Com um título destacado na 1ªPágina:


Uma tarde no “Central”…
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Falámos com um pedinte
Ficámos conhecendo um homem
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Pausa e conversa fiada com um grupo de amigos na esplanada do Central. Vocês sabem: Aquele aquário de “peixes humanos” que se agitam. Murmuram, gritam, batem palmas, calam o seu pensamento e, especialmente, põem a trabalhar ao ralenti  uma coisa que por cá nunca atinge grandes velocidades – a inteligência.
Uma tarde morna e a ameaçar a humidade da noite sadina. Um sol que já quase desaparece e um Bocage em cima de uma coluna onde não serão poucos os que gostariam de se empoleirarem para espreitarem por cima o que não são capazes de ver cá em baixo.
O ambiente usual em tardes de sábado. Tardes que adivinham a noite mais longa da semana…
Topámos um velhote com um ar tão patusco que é difícil descrever. Um andar mole, de botas cardadas à algarvio da serra. Uns olhos vivos e trocistas. Um velho guarda-chuva de pano azul, desbotado, enrolado (cuidadosamente enrolado) num saco de plástico.  Um saco remendado com borlas nas pontas. Aos quadrados. Uma manta ao ombro e um cajado nodoso na mão esquerda para ajudar o andar vacilante.
Umas mãos nervosas, sem calos, de unhas cortadas, que não diziam da vida deste homem que, por andar a pedir esmola é, socialmente chamado pedinte.  Sem tabuleta na testa. Pelo menos eu não a vi. Mas ela estaria lá , pelo ar de enfado que se desprendia de enfatuadas criaturas a cuja mesa ele tinha ido pedir uns tostões…
Chegou-se a nós mas nada disse. Pensou que tivéssemos visto a tal tabuleta que só vê quem a quer ver. Como em muitas outras coisas, afinal.
-- Boa tarde, dissemos-lhe
--“Bonsoir” – retorquiu ele, apressando-se a traduzir: Boa tarde.
Olhámos uns para os outros, pensando que era um caso de indivíduos que aprendem as frases necessárias para as alturas precisas.
--Dão-me dinheiro? Perguntou o velhote.
-- Só se pedir em francês – disse um de nós, entusiasmado pela primeira saída do idoso algarvio.
--“Pouvez-vous me donner quelque d’argent? – disse apressadamente, tornando a traduzir.
Começámos a achar piada pelo facto de ele saber “alinhavar” qualquer coisa de francês.
Perguntámos-lhe se sabia falar a língua gaulesa, e qual não foi o nosso espanto quando ele continuou a falar num francês bastante aceitável, traduzindo sempre, pensando talvez que não o compreendêssemos.
Conversa puxa conversa. Daí a pouco estávamos em diálogo ameno, com o velhote sentado à nossa mesa.
Contou-nos então que era de Faro, que tinha imigrado para França há muitos anos, que conhecia a Espanha, a França, a Itália, a Suíça, e, por aí fora, toda a Europa Central, até aos Países Baixos.
Falou-nos da implantação da República em Portugal, de alguns aspectos da acção do Dr. Afonso Costa (natural de Loulé, portanto  algarvio também) e, apesar de algumas incorrecções históricas, era de uma memória impressionante em relação aos factos que dominaram a vida política portuguesa durante a sua juventude.
Trabalhou em todos os países por onde andou. É capaz de se exprimir em espanhol, francês e italiano. Dava-se conta do atraso português em relação à Europa quando se referia às condições técnicas em que trabalhou e sobre as dominantes em Portugal, mostrou uma consciência  nítida do subdesenvolvimento mental (especialmente analfabetismo) em que as camadas populares foram mantidas durante muito tempo.
Falou-se da II Guerra Mundial e das condições deprimentes que ele detectou. Familiares seus morreram pouco depois de 45, na sua expressão, por causa “do frio e da fome” que passaram durante o flagelo que assolou a Europa.
E nós quase nos esquecemos de que estávamos no café…. Um homem em corpo e alma, com uma vida vivida e experimentada. Uma consciência adquirida no concreto, na vida, na sua relação com outros homens e outros povos. O seu contacto com outras línguas. O seu trabalho em terras da estranja e, as suas expressões, tão “patuscas” como o seu aspecto e tão profundas como as dificuldades em que perpassou a sua vida!
-- “Vocês! Vocês são ainda muito novos… Não sabem nada. O corrido vale mais que o lido, porque quem lê não viu. Quem viu foram os outros que escreveram. Quem corre conhece as coisas porque as vê”
E nós a pensarmos; e todos a julgarmos sempre que os livros são muito! Lá ser, são. Porém podem não ser nada. Podem der simplesmente “papel pintado”, em vez de vida.
A filosofia do mergulho na vida, como este homem  nos testemunhou.
-- “Qualquer dia morro. Uma pessoa sabe muito bem que tudo quanto nasce tem de morrer” – disse o velhote e acrescenta contristado: -- “Só tenho pena de morrer sem saber ao certo quem fez o céu e a terra e de não poder deixar aos portugueses a minha língua”. 
A sua “língua” que é a do conhecimento real das coisas, a da vida amassada na experiência difícil do existir todos os dias; a decisão de na altura da sua juventude ter tido coragem de passar a fronteira com a Espanha, com a Europa, fundamentalmente a do subdesenvolvimento e analfabetismo a que o acaso de ter nascido aqui o condenaria.
Não teria passado muito tempo. Talvez o tempo dos relógios, que por vezes se tornam as máquinas de estragar o coração das pessoas. Porém, o tom cordial da conversa, fizera-nos dar o salto. A simpatia da conversa tinha feito de nós amigos num diálogo, como se nos conhecêssemos há muito.
Digo-vos: passou pelo Central, faz hoje uma semana, um homem. Arriscava-se a passear incógnito, por ter a tal tabuleta que as pessoas põem na testa dos outros, quando não lhes interessa preocupar-se com eles.
Passou e gostava que o que ele nos disse não caísse em “saco de fundo roto”.
Passada uma semana, dou comigo a perguntar baixinho a mim mesmo:
“Onde terá dormido essa noite? Que terá comido? Quem lhe terá dito até amanhã e o acordou no dia seguinte?...

José de Matos

NB 1 - José Agostinho Martins de Matos tinha 19 anos quando escreveu este texto publicado em “O Setubalense”, no dia 22 de Julho de 1972
Actualmente é o Presidente da Comissão Executiva da Caixa Geral de Depósitos e foi Vice-Governador do Banco de Portugal

         NB 2 - Posso estar a cometer um erro grave... mas penso que actualmente há, pelas ruas da nossa cidade... (pelas ruas das nossas cidades...) bastantes mais "pedintes" sem "tabuletas" na testa...

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