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16 outubro 2020

Há muito tempo...

...que não estávamos com
Faíza Hayat.
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Faíza Hayat.
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"O homem que queria ser ninguém…"
foi o título escolhido por Faíza 
para este conto que publicou 
em Março de 2008
no jornal "Público"
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Um dia, num pequeno hotel do Cairo, conheci um homem curioso: Lazlo fora muito rico, tinha ainda bastante dinheiro, mas orgulhava-se de não possuir qualquer bem material valioso, com excepção de um “laptop”. Contou-me que herdara uma fábrica de artigos de porcelana e que a gerira durante 15 anos com bastante sucesso. Após um divórcio tumultuoso – a mulher acusava-o de não ter tempo para se dedicar à família nem aos amigos -, decidiu vender a fábrica, casas e propriedades, carros, barcos, enfim tudo aquilo que, nas palavras dele, “pudesse constituir lastro”. Hoje viaja pelo mundo inteiro, de hotel em hotel, sem outra bagagem a não ser uma pequena pasta de couro com documentos e um “laptop”. Chega a uma determinada cidade, instala-se num hotel, compra alguma roupa e produtos de higiene, dois ou três livros, e ao partir oferece a roupa, os livros, o pouco que tenha adquirido e não caiba dentro da pasta de couro. Lembrei-me de Lazlo ao ver “O Lado Selvagem”, filme realizado por Sean Penn. O filme é baseado na história verídica de Christopher McCandless, um jovem americano que decidiu partir para o Alasca com o objectivo de abandonar a civilização – e ali veio a morrer de fome (em pleno verão e a poucos quilómetros de um estrada movimentada). Porém, ao contrário de Christopher, Lazlo não demonstra afeição por Thoreau nem, aliás, por nenhuma filosofia política em particular. Não é nem um socialista utópico, nem um anarquista melancólico em semi coma alcoólico. 
Apenas um tipo comum, que decidiu não ter nada, com a mesma força e a mesa determinação
com que outros decidem ter.
Perguntei-lhe se não sente, por vezes, a falta de uma casa.
- Não! – confessou, com certo espanto.
- É como se você tirasse um peixe de um pequeno aquário para o colocar no mar. Acha que ele sente a falta de um aquário?
Assegurou-me que não há nada me
lhor do que viver num hotel. Lembrou-me o caso de Vladimir Nabokov, que viveu desde 1959 até falecer em 1977, no Hotel Montreux Palace, na Suiça. Menos luxuosamente, mas mais preguiçosamente, o escritor egípcio Albert Cossery habita desde 1951 no mesmo quarto do hotel La Louisiane, situado em pleno coração de Daint-Germain-des-Prés, em 
Paris. Retorqui que viver num mesmo quarto de hotel por tanto tempo era o mesmo que fazer desse quarto um verdadeiro lar. Lazlo concordou:
- Exactamente. Além disso, um quarto de hotel é sempre o mesmo quarto, apenas muda a paisagem. O meu lar são todos os hotéis.
Lazlo é uma espécie de vagabundo elegante. Um velho senhor muito bem vestido, muito amável, sempre com um livro na mão. Costumava vê-lo a ler no bar do hotel, ou, mais raramente, a escreve
r no seu “laptop”. Visitei com ele o Museu do Cairo. Impressionou-me a quantidade de artefactos, animais domésticos, escravos e escravas que o faraó levava consigo na última viagem. 

- Esta gente não sabia morrer, comentou.
- Quando eu me for, quero ir ligeiro. Não precisamos de gravata para atravessar o rio. Que maravilha, não acha?! A morte é despojada.
Quanto a mim confesso que simpatizo mais com Lazlo do que com Cristopher McCandless, que queimou o pouco dinheiro que tinha antes de iniciar a sua viagem rumo o norte, e à morte. O melhor é não ter nada, usufruindo de tudo; renunciar à posse, mas jamais ao conforto. Renegar o capitalismo sem todavia comprometer o capital.

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