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28 maio 2017

Há 7 anos era um escândalo...

in "Observador"
21 05 2017
16h:10m
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Helena Matos
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A gestão do monopólio da indignação está em Portugal naquela faixa em que se aglutinam o velho jacobinismo ao marxismo praticante ou transmigrado para o universos das causas. Da importância política desse monopólio temos sinais todas as semanas. Por exemplo, voltemos mais uma vez à vinda do Papa Francisco a Portugal. Comecemos pelo momento em que o Papa foi recebido pelo Presidente da República. Este recebe-o com vénia e beija-mão. O silêncio que caiu sobre esse gesto contrasta com o sururu que acompanhou outro aquando da vinda a Portugal de Bento XVI: Maria Cavaco Silva fez uma vénia ao então papa. Convém recordar que Maria Cavaco Silva não era Presidente da República, não tinha qualquer cargo oficial mas era tão só casada com o então Presidente da República. Mesmo assim esse seu gesto logo gerou indignação e artigos a criticá-la e também ao seu marido. Agora foi o próprio chefe de Estado quem na base aérea de Monte Real, no momento em que recebia outro chefe de Estado, fez uma vénia acompanhada de simbólico beija-mão. Alguém viu?

O que aconteceu entre 2010 e 2017 para que aquilo que teria sido um escândalo há sete anos fosse agora ignorado? Apenas que os monopolistas da indignação além de acharem que também os papas devem ser submetidos ao seu exame prévio, não viam, em 2010, o então Presidente como um aliado e agora vêem o seu sucessor como um parceiro. Parceiro instrumental e a prazo, mas por agora parceiro.

Mas o momento mais revelador desta espécie de bitola que desliza sobre a realidade tornando-a execrável ou aceitável consoante assim o decidem os monopolistas da indignação teve lugar quando, segundo o Público, António Costatomou mesmo conta dos filhos de João Miguel Tavares”. Independentemente do paradoxo subjacente ao facto de as escolas católicas funcionarem no dia da vinda do Papa enquanto as públicas encerram, aquilo a que nesse dia se assistiu em São Bento foi um daqueles momentos em que se percebe a mais valia do monopólio da indignação. Em primeiro lugar jamais um primeiro-ministro que não estivesse coordenado com esse sector arriscaria dizer que tomava conta dos filhos de um colunista que se sentisse prejudicado pela tolerância de ponto dada às escolas públicas pois de imediato dezenas de comissões de pais ameaçariam levar os seus rebentos para São Bento. Também não faltariam os psicólogos, sociólogos e especialistas em segurança infantil a dizer que São Bento não reúne as condições de segurança indispensáveis à guarda de crianças sejam elas três, quatro, dez ou vinte. Desde as escadas à necessidade da sesta tudo seria visto ao detalhe. Em seguida, viria a denúncia do óbvio: o primeiro-ministro só estaria por breves momentos em São Bento pois tinha compromissos inadiáveis de agenda, no caso receber o Papa, logo alguém – quem? Com que formação? Faz parte das suas competências? O que disseram os respectivos sindicatos? – teria de ficar com as crianças. Por fim, concluir-se-ia, com notória clarividência, que o primeiro-ministro era um demagogo que depois de ter querido comprar o voto dos funcionários públicos com a tolerância de ponto nem hesitava em recorrer ao populismo mais óbvio para conseguir os seus objectivos. As redes sociais não tardariam a tornar viral o lema "Com os meus filhos não!" desenhado sobre a cara do dito chefe de executivo cuja cabeça já seria pedida em altos gritos pela oposição e em sussurro pelos seus pares.

A gestão da indignação ou da ausência dela fazem parte da propaganda. Boa parte do que para aí anda de causas e causinhas são propaganda no velho sentido termo. E tal como nos velhos tempos o reverso da indignação são a bajulação e a omissão. Aparentemente espumas do tempo. Na prática factos seleccionados que nos distraem do essencial. É esse o vídeo da nossa vida e tem cenas mesmo chocantes.
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in "Observador"
21.05.2017

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