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20 abril 2017

Um ser que sorri...

O Homem é um ser que ri
é o título escolhido por Faíza Hayat
para o conto que escreveu em Janeiro de 2008

no "Público"
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Faíza Hayat
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O Homem é um ser que ri. Não o único ser que ri, porque “Camilo”, o meu papagaio, consegue encher a casa de belas e sonoras gargalhadas, enquanto sacode as asas, ainda que eu nem sempre consiga compreender o motivo delas. “Camilo” tem um sentido de humor muito particular. Ri-se e o ar à sua volta enche-se de penas. Depois do riso ficam as penas.
Segundo Pirandello, o riso nasce da percepção do contrário. Quando George Bush diz, por exemplo: “Tenho as minhas opiniões, opiniões fortes, mas nem sempre estou de acordo com elas”, o que nos leva ao riso é o subtil fulgor do disparate.
Rir implica, pois, inteligência mas também um mínimo de crueldade. Rimos do erro do outro, na convicção de que não o poderíamos cometer. Se imaginarmos que sim, que o erro poderia ser nosso, não rimos – sorrimos. Daí que o sorriso é quase sempre mais elegante do que a gargalhada.
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“Camilo” não sabe sorrir. Talvez, então, o Homem seja realmente o único animal que sabe sorrir. Podemos imaginar máquinas capazes de recolher um imenso manancial de informação, máquinas dotadas de um certo tipo de inteligência lógica – computadores, como o Deep Blue II, capazes de vencer Kasparov -- , mas é mais difícil acreditar que venhamos algum dia a trocar piadas com robots. O sentido de humor é o sal da inteligência. Melhor. é a prova dos nove da verdadeira inteligência.
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Um dos meus professores, em Barcelona, orgulhava-se de ser uma verdadeira enciclopédia, capaz de discursar durante horas sobre qualquer assunto. Alguém lembrava o facto de estarmos em plena época de saldos e logo ele se punha a falar sobre o fenómeno da moda no Antigo Egipto. Perguntavam-lhe as horas e ele debitava um tratado sobre o conceito do tempo desde a antiguidade clássica até aos nossos dias. Desconfio, contudo, que toda aquela erudição escondesse uma absoluta incapacidade de análise e reflexão e, sobretudo, de sentido de humor.
Lembro-me dele como um homem se riso difícil. Não me recordo, além disso, de o ter ouvido alguma vez defender uma ideia interessante. Acho que estava mais perto de Deep Blue II, do que de “Camilo” e, ainda por cima, duvido de que fosse capaz de vencer Kasparov.
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Quase todas as mulheres respondem a mesma coisa quando interrogadas sobre a qualidade que mais apreciam nos homens – o bom humor. É um lugar comum, um pouco como as misses lerem “O Pequeno Príncipe”. “Ao fim de todos estes anos, ele ainda me faz rir”, diz uma das minhas vizinhas para justificar porque nunca pensou em abandonar o marido, um D.Juan um tanto ou quanto decrépito, mas sempre impecavelmente vestido e penteado que, apesar dos setenta e tantos anos continua a traí-la com as velhinhas do bairro. Compreendo-a bem. Também eu preferia um marido um pouco estroina, porém bem humorado, a um marido fiel mas chato.
Eventualmente fiel, apenas porque tão chato. Pensando bem, quase todas as restantes qualidades importantes num homem estão de alguma forma ligadas a esta: a inteligência, a sensibilidade ou a capacidade de enfrentar os maus momentos.
Bom humor é uma qualidade, aliás, que eu exijo não apenas a um marido mas também a um escritor, a qualquer artista, a um político ou a um cientista. Receio quem não sabe rir. Receio que não saiba pensar.
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Depois do riso ficam as penas, bem sei – foi algo que aprendi com o meu papagaio. As deles são leves. Leva-as o vento.
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Publicado em 20.01.2008
no suplemento “Pública

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