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14 setembro 2017

Libertadores...

...foi o título escolhido por Faíza Hayat
para este conto que publicou em Março de 2008
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Faíza Haiat

Libertadores

Tive, um dia, uma discussão violenta com um amigo africano a propósito de libertadores. Ele nomeou a geração da libertação e eu emendei para geração da traição.


Foi nesse ponto que nos zangámos, porque ele, tendo alinhado na trincheira dos libertadores, não admitiu “insultos de quem nunca teve de pagar para ser livre”.


Referia-se a mim e eu também achei que não era bem a prateleira onde queria estar.

A zanga entre nós durou uns tempos. Depois, apareceu na minha caixa de correio uma carta. Entre muitas reflexões, continha citações de um herói da libertação africana sobre a maior ameaça ao sucesso da luta: a traição.

Dizia esse libertador sobre a gente que fermenta à volta dos lideres: “O que é que eles querem ao fim e ao cabo? Querem casas bonitas, calças e fatos de tergal luzidios, joias por todos os lados, roupas das mais esquisitas, ter quantas mulheres querem quando se trata de homens, fazer o que bem entendem quando se trata de mulheres. Ambição profunda, camaradas. Compreensível até um certo ponto, mas tremendamente medonho a partir de um certo ponto também. Compreensível porque nós, africanos, nunca tivemos nada e, quando o caminho se abre para termos coisas, queremos ter tudo num dia só. E então, para ter tudo num só dia, traímos. Ambição e mais ambição.”

Nota do meu amigo sobre esta passagem: “Onde se lê ‘africanos’ podes pôr ‘oprimidos’ de qualquer parte. Romantismos à parte, não é que a revolução não seja um convite para jantar. Não é, claro. Mais: a única revolução é ir dormir sem ceia.


Escrevi uma carta de resposta que, a bem dessa amizade, nunca pus no correio. Encontrei-o há tempos, numa mudança de casa. Dizia-lhe eu: “Os libertadores por quem tu continuas a lutar não chegaram a sentar-se à mesa. Os que se sentaram foi para mandar nas migalhas.

O Zimbadwe foi a votos. Do que conheço de Robert Mugabe, um farol da libertação africana, é que é um velho sociopata que assegurou o poder à custa do sangue (incluindo o do seu próprio irmão, como é voz corrente entre os zimbabweanos) e que, na última década, usou as estruturas do partido para desmantelar o melhor país entre o Cairo e o Cabo.

É infindável, e penosa, a lista de outros libertadores, por todo o mundo, que nas últimas décadas do século XX deram contribuições idênticas à infelicidade dos seus povos.

Os portugueses, por proximidade cronológica, deviam ser mais realistas, ou mais cautelosos, com a geração da traição. Pelo contrário, acredito que somos a sociedade (pos-) colonial que, na Europa, mais dificuldade tem em descolar dos mitos e das mentiras dos heróis da “libertação”. E que, por isso, continuam viciados na legitimação de ditaduras, totalitarismos, guerras civis e esquemas de pilhagem e humilhação.

O que esquecemos, ainda hoje, é um dado empírico triste: dentro de um movimento de “libertação”, os que assistem à hora da vitória são, por regra, os piores daqueles que fizeram parte da luta.

É essa a biologia, embora não a genética, de muitos movimentos: do MPLA e da UNITA ao PAIGC, à Frelimo (a Renamo, pela sua génese, nem conta nesta prateleira), ao ANC, à ZANU-PF, aos “mujahedines” afegãos ou ao UCK albanês.

O que esquecemos, infelizmente, é que as vitórias não se obtêm pela bondade da causa, mas pela persistência da astúcia. A poesia conta bastante menos que a máquina. E são os homens da máquina que, no momento da independência, tomam normalmente as rédeas do projecto nacional.

Os outros, os autênticos libertadores, ficaram pelo caminho, engolidos de alguma maneira pela lógica ou a conivência da máquina. Como Amílcar Cabral ou Eduardo Mondlane ou Viriato da Cruz. Nós, portugueses, devíamos saber melhor…

“A meu ver, nunca é demasiado confiar nos homem, mas chega um momento em que é preciso parar. Quando começamos a ver que já está a ir demasiado longe”, citava o meu amigo desavindo na carta de reconciliação.

Esta, como as outras, eram frases de Amílcar Cabral aos quadros do PAIGC, em 1971.

“Não há ninguém que não acredite em Deus que não o tenha enganado ainda”, explicou também Cabral aos traidores que o rodeavam e que continuam, hoje, a comer as entranhas da sua nação. Os “libertadores” no activo são, em geral, os parasitas do sonho colectivo de libertação—como na Libéria do século XIX ou no Timor-Leste do século XXI.

Cabral, claro, era um timoneiro com moral. Por isso ia morrer – e deu-se ao trabalho de explicar por quê.

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