Quinze dias depois, o telefone
toca em minha casa. Atendi. Era o Vasco Pulido Valente a perguntar-me se eu não quereria ir
trabalhar com ele no recém-criado Departamento de Programas Político-Sociais na
RTP, do qual ele fora nomeado coordenador ou chefe ou outra coisa qualquer.
Fiquei estupefacta! Mas não levei mais do que dois ou três segundos a perceber
que ele tinha apreciado a minha irreverência. Ao longo da vida, nunca mais esta
qualidade me serviu de trunfo para nada – bem pelo contrário, serviu-me para
arranjar sarilhos e inimizades. Este episódio, à primeira vista tão
banal, revelou-me que encontrara uma pessoa muito especial e peculiar.
Eu lá entrei para a Televisão, e o Vasco bateu a porta
duas ou três semanas depois. Déramo-nos bem, estabelecera-se entre nós uma
espécie de amizade e dentro de pouco tempo já tínhamos amigos comuns. Mas
mantive sempre com o Vasco uma relação à parte. Almoçávamos ou jantávamos
juntos com regular assiduidade. Começámos pelo “Isaura”, que frequentámos
bastante tempo; daqui passámos para o “Polícia”, onde jantávamos quase
quinzenalmente; e, num upgrade final, mudámo-nos para o “Gambrinus”: já
tínhamos subido na vida o suficiente para sustentar este luxo.
Mas foi ainda no tempo do “Isaura” que o Vasco um dia
me deixou completamente desconcertada. Falávamos sobre as pessoas, as suas
qualidades e defeitos. Eu disse qualquer coisa como – “Ninguém fala dos seus
defeitos mais graves ou feios”. Resposta: “Pois eu falo”. Pergunta: “Então diz
lá um defeito teu daqueles que as pessoas não mencionam.” Resposta: “Olha, por
exemplo, sou mentiroso.” “Repete lá isso!”. “Eu sou mentiroso”. Fiquei atónita
e sem palavras: tanta coragem moral! Desde esse dia passei a olhar para o Vasco
com muita admiração e muito respeitinho. Quantas pessoas haverá capazes de se
exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.
Não tem fim o que lhe devo. De todas as vezes que
estivemos juntos aprendi sempre alguma coisa com ele; ou levava para casa uma
questão para pensar. Principalmente, foi com o Vasco que aprendi a escrever
história, num tempo em que a produção
historiográfica portuguesa, esmagada entre o academismo e o marxismo, era
praticamente ilegível. Sobre isto, o Vasco era
divertidíssimo, mormente quando dedilhava as suas cordas mais cáusticas e
mordazes, que eram as minhas preferidas. Estas duas qualidades, sobretudo,
irritavam os leitores das suas inúmeras crónicas: que era um pessimista
crónico, talhado para só ver o lado sombrio da existência. De facto, esta não
lhe aparecia pelo lado solar, e ele não estava disposto a dourar a pílula da
vida ou o mundo. Vasco Pulido Valente sempre foi o implacável escritor de uma
justificada desesperança.
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