... na Politécnica. Presumo que morava ali por perto. Pequeno-almoço e jornais, o tempo suficiente para ir à vida logo a seguir.
Luís Osório dedica-lhe o Editorial do "i", de hoje, dia 24 de Fevereiro e desenha dele um bom retrato.
.
Luís Osório
Director-Adjunto do "i"
.
Podia ter sido tudo, mas estava condenado
a ser tudo sem ter sido nada do que vários vaticinavam. O preço a pagar pela
petulância de ser livre.
José Medeiros Ferreira dizia de si próprio ser um “profeta
desarmado”. Um profeta sem as armas do tempo, mas com a arrogância e o ego de
uma superioridade moral e intelectual que poucos políticos ou homens do poder
suportavam. De todos os que conheci, e foram alguns, ninguém juntava tão bem a
liberdade de espírito e acção, a ironia e a sofisticação. Uma mistura explosiva,
que nunca dá bons resultados para quem deseja também um comprometimento público
com o exercício da cidadania e da política activa.
.
José Medeiros Ferreira
.
Era um poço sem fundo de sabedoria. Privei com ele nos meus
primeiros anos de vida adulta. Arrogante, de ideias absolutas, aprendi a fazer
silêncio, a escutar, a pôr palavras na balança. Difícil não fazer silêncio
quando o risco de ficar aquém era total, mais difícil ainda resistir incólume ao
seu humor finíssimo, ironia que interpela, põe em causa, esmaga o descaramento
da ignorância e a infâmia dos que, tendo poder, não têm solidez e cimento.
Deixou de ser ouvido. Não estavam para o aturar. Uma parte
substancial dos deputados da sua bancada, ministros e estrelas mediáticas de
pacotilha, não suportavam ser confrontados com a sua própria pequenez, a sua
incultura, a sua pobreza retórica. Era uma chatice o José Medeiros Ferreira.
Como são Vasco Pulido Valente, António Barreto ou Pacheco Pereira. O país dos
que decidem, dos que influenciam, habituado e balofo de tanto fast food, nunca
aguenta de ânimo leve o raciocínio de gourmet deste príncipe de Maquiavel.
Tinha um ego enorme. Vestia-se bem. Circulava pelo
parlamento ou por casa com a leveza de um aristocrata. Os salões eram seus,
imagem implacável que pagou cara. Por isso, também por isso, foi o mais jovem
ministro dos Negócios Estrangeiros da história, com pouco mais de 30 anos, e
nunca mais haveria de ser o que parecia estar escrito. Mais nada. Enquanto
ministro ajudou a criar condições para a entrada de Portugal na CEE e lançou a
ideia revolucionária dos três D: Democratizar, Desenvolver, Descolonizar. Podia
ter sido tudo, mas estava condenado a ser tudo sem ter sido nada do que vários
vaticinavam. O preço a pagar pela petulância de ser livre num país acanhado, um
pouco cinzento e sempre cruel para quem não se orgulha com a mediania.
Esteve no governo de Mário Soares, apoiou Sá
Carneiro, ajudou a fundar o PRD (faz precisamente hoje 30 anos) e voltou ao PS,
onde nunca comeu e calou. Defendeu que Sócrates devia abandonar a liderança e
não concorrer às últimas eleições legislativas; em troca o ex-primeiro-ministro
retirou-o da lista de deputados. Talvez por isso tantas estrelas políticas e
mediáticas estiveram na homenagem que lhe fizeram na Gulbenkian. Cavaco,
Sampaio, Eanes, quatro ex-presidentes da Assembleia da República e dezenas de
homens e mulheres que disseram ao país o quanto Medeiros Ferreira foi
importante, decisivo, maravilhoso e o diabo a sete. O actual Presidente da
República afirmou que José era avesso a lugares-comuns, afirmação que ela
própria foi um lugar-comum. Não interessa, ainda bem que esteve. Ficou-lhe bem.
Uma homenagem justa que foi também uma metáfora
de um país hipócrita. Um país em que os políticos falam de liberdade sem
realmente a tolerar. José foi ostracizado em vida por pensar pela sua cabeça,
por ser um franco-atirador que toda a gente temia. Muitos dos que o celebraram,
não todos mas muitos, são os mesmos que não o toleraram, não o convidaram, não
suportavam a sua presença. O resto pertence à história.
Sem comentários:
Enviar um comentário