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28 outubro 2007

Eles foram meus professores...

Ano lectivo de 1954/55

Morfologia e Fisiologia Vegetais
cadeira do 2ºano do Curso de Ciências Biológicas
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Flávio Resende

Prof. Flávio Teixeira Pinto Resende

Foi o meu melhor Professor! E um exemplo para todos nós…
Parece-me que, assim, fica tudo dito a respeito de Flávio Resende

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Sabedor, humano, amigo a quem respeitávamos, não com o medo que muitas vezes se interpunha entre professor e aluno, mas pelo exemplo que era, para nós, como cientista honesto, cidadão impoluto e, ele próprio, sem medo do ambiente politico que nas universidades se vivia por aqueles tempos…

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Numa entrevista que , em 13 de Janeiro deste ano, concedeu a Clara Pinto Correia, Fernando Catarino referiu-se ao Professor Flávio Resende dizendo:
Foi excepcional. E era militantemente optimista, sempre convicto de que se podem melhorar as coisas. Conhecia o Eça de cor e era raro o dia em que não o citava, a propósito do nosso modo caricato de ser, viver e estar. Foi atingido por aquela leva de purgas dos professores universitários que Salazar fez em 47, e nunca baixou os braços. Muitos dos atingidos tinham, de facto, envolvimentos políticos. Este só tinha liberdade de pensar e dom da palavra, e nunca se levava, a si próprio, muito à sério a não ser nas questões morais”.

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Um pouco adiante, o Prof. Catarino contava uma pequena história que diz bem da formação moral de Flávio Resende:
Quando Resende veio para o Jardim Botânico, em 1944, existiam 23 famílias a viver dentro do Jardim Botânico em casas degradadas, em condições miseráveis. Eram técnicos da faculdade que iam trazendo a família. Os jardineiros andavam de roupa remendada, praticamente descalços, de alpergatas rotas, e falavam com ele a medo, de olhos baixos e de chapéu na mão. Ele mandou logo comprar botas para toda a gente. Passados uns meses o encarregado veio queixar-se de que os jardineiros diziam que as botas estavam apertadas. E ele, logo: fantástico! Já são homens! Com melhores condições de vida já eram capazes de exigir, de refilar - isso é um homem. Quando nós vivemos no meio da chafurdice, deixamos de dar por isso…”
“(Os professores naquele tempo)…eram homens cultos. E preocupavam-se com o mal-estar físico dos pobres.”

O aluno Fernando Catarino com Flávio Resende
na AEFCL – Semana da Biologia/1958

Flávio Resende foi meu professor no 2ºsemestre de 1954/55, quando regeu a cadeira do 2ºAno, “Morfologia e Fisiologia Vegetais”. A parte de Fisiologia Vegetal esteve a cargo de Pinto Lopes durante o 1ºPeríodo. O Prof. Resende não estaria em Portugal no início do ano lectivo e as matérias de Fisiologia foram entregues ao seu Assistente.
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Foi um professor excepcional! Sabedor, cientificamente sério e de qualidades humanas sem comparação… Era exigente e os seus alunos viam-se obrigados a estudar e a “prestar provas”…
A cadeira que com ele fiz em Lisboa deu-me as bases suficientes quando em 1956 me matriculei em “Biologia”, cadeira do último ano, na Universidade do Porto. Fui considerado um “crack” pela simples razão de, naquela Faculdade de Ciências, o Professor Cabral Resende Pinto ter escolhido um programa quase idêntico ao que se dava em “Morfologia e Fisiologia”, em Lisboa.
Naquela época, em 1956, falar em Cariocinese, falar em Metafase e Anafase, falar em Leptóteno ou Zigóteno… era complicado! Flávio Resende tinha publicado há pouco tempo um trabalho sobre Mitose que foi colocado na Secção de Folhas da Associação de Estudantes. Esse livro foi uma "bíblia"...Também não nos devemos esquecer que foi em meados de 1953 que Krick e Watson falaram pela primeira vez na estrutura do DNA…

Nas aulas práticas, tínhamos aprendido muito bem, com o Prof. Resende, a distinguir sem grandes dificuldades, no campo do microscópio, as várias fases e estádios da Mitose.
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Para meu espanto, numa das primeiras aulas práticas com o Resende Pinto, dei comigo a falar sozinho com ele a respeito da divisão nuclear… com todo o resto da turma ouvindo em silêncio!... E o Professor espantado com a “desenvoltura” de um aluno que ele não conhecia dos anos anteriores...
Ficou tudo esclarecido quando ele perguntou com aquele ar de “fera” que sempre cultivou:

Como é que você veio parar aqui?! De onde é que você caiu?...”
Lá lhe expliquei que estudara em Lisboa nos anos anteriores e já fizera a cadeira de “Morfologia e Fisiologia Vegetais” onde se tinha de estudar toda a matéria que ali estava a ser dada, numa cadeira do último ano!
E quem foi o seu Professor?” insistiu a “Fera do Instituto Botânico”…
O meu Professor de Morfologia e Fisiologia chamava-se Flávio Resende…” respondi de seguida.
Só podia ser!!” volveu o Professor...
Só então soube que estes dois “Resendes” que se cruzaram comigo naquela época, eram “primos entre si”…
Dei-me bem com ambos e “brilhei” com o segundo… com aquilo que me havia ensinado o primeiro!

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Numa entrevista conduzida por Nuno Campos, a Profª Maria Salomé Soares Pais proferiu as palavras que refiro em seguida, depois de lhe ter sido perguntado se houve algum professor que a tivesse marcado especialmente:
Sem dúvida. O Prof. Flávio Resende, em cujas aulas não era possível tirar um único apontamento, porque ele, tendo um raciocínio brilhante, saltava de um tema para outro com um entusiasmo fantástico. Dava as aulas como uma conversa. O Prof. Resende era um imaginador, ele levantava hipóteses, imaginando soluções para as questões.
Esta atitude é essencial em investigação
.”

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No Verão de 1966, numa deslocação que com o meu colega António Maurício fizemos à Faculdade, encontrámos o Professor no Jardim Botânico, ali mesmo ao pé da “Ficus elastica”, nas imediações do sector da Botânica… E foi ali mesmo que conversámos com ele durante bastante tempo… Gostava de ver e de falar com os seus antigos alunos…
“Onde estão”… “O que fazem?”... “Como vos corre a vida?”...

Estas coisas que se dizem naturalmente quando se encontram antigos alunos…
“Estamos ambos em Setúbal, no Liceu…” , “Fizemos já o estágio no Pedro Nunes…”, “As coisas vão correndo… mais ou menos…”

Estas conversas que se têm e agradam a quem foi um dos “responsáveis” pelo trajecto que ambos estávamos a percorrer.
Durante a nossa conversa ele não deixou de fumar… cigarro atrás de cigarro! E não deixou de tossir…
Eu tinha deixado de fumar há um ano, em Agosto de 1965 , e sentia-me com “força moral” suficiente para lhe dizer que não devia fumar tanto… Nunca mais esqueci a resposta que nos deu sobre esse assunto!
Dizem, embora não esteja suficientemente provado, que o tabaco pode estar na origem de um cancro… Com a idade que tenho não vou ligar muito a isso! E se o cancro vier o que é que eu poderei fazer?!” Palavras ditas com aquele ar de quem é “militantemente optimista, sempre convicto de que se podem melhorar as coisas…”
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Passados alguns meses Flávio Resende falecia, na passagem de 1966 para 1967… depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro…

A Faculdade de Ciências perdia um Mestre. Os seus alunos perdiam um bom Amigo...

(fotos retiradas de "Memórias de Professores Cientistas"
sendo a primeira da autoria do Dr.Armando Bastos, obtida em 1965)

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