... num "apontamento" escrito
em 5.Nov. 2000
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Mia Couto
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A prosa de Mia Couto nunca me fez
boas as digestões... No entanto, hoje, não resisto a tornar memória algumas
palavras do seu conto “O Último Ponto Cardeal” que o Público nos mostra na sua
revista de hoje.
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“ E porquê ele agora perfaz o sinal da cruz, frente ao peito? Luzinha sabe que o homem é solúvel em ternura. Mesmo que pouca, era bastante para homem sumário como o Apolinário.
- Desculpe, Apolinito, mas se benze por razão de quê?
- Não é nada. Nem reparei.
- E que olhos são esses?
- Estou olhando seus parapeitos.
Parecem bóias de segurança.
Ela sorri em
malandra ingenuidade. O marido não tem mais vasto vocabulário. Luzinha pensa na
hesitação do amante. Talvez ele tivesse medo de falhar. Pois, sabido é: o macho
vê no amor a prova de sua valia. Mas ele sossega-se: antes de deitarem já ambos
tinham ganho a vitória maior de se quererem. A gente fere a terra para semear,
a gente magoa para amar?
Mais adiante, continua...
“Ela já se assusta. O homem descanalizou? Mas ele, lacrimoso, se dirige a ela e lhe pede que se deite outra vez, que o receba, corpo de seu corpo, Apolinário se deita por cima dela, com o peso de um simples ocaso, luz que se desnuda sobre outra luz. E se enredam, gementes. Ela se faz carícia até à unha. Ele se ondeia, imitação de mar, espraiação de si. De repente, porém, o homem pára e, de novo, se absorve, longínquo.
- Porquê? Porquê parou?
- Sabe a razão do sinal da cruz, antes
de fazermos amores?
Pela primeira vez, explica: ele se
encomenda a Deus. Pede para que morra em pleno acto. Que essa a maneira mais
feliz de falecer.(...)
Já seu avô, Marcelino, tinha morrido em cama mas sem outra doença que não fosse o se avivar com mulher. E ele, Apolinário, fosse canalizador ou mesmo canalista, que outra felicidade lhe irrompera a vida? Que outras paixões lhe acometeriam sua pobre vivência?
- E agora, mulher, estou sentindo que Deus, desta vez, me ouviu mesmo.
Luzinha, gelada,
estanca. O homem lhe sopra no ouvido que prossiga...”
“ E porquê ele agora perfaz o sinal da cruz, frente ao peito? Luzinha sabe que o homem é solúvel em ternura. Mesmo que pouca, era bastante para homem sumário como o Apolinário.
- Desculpe, Apolinito, mas se benze por razão de quê?
Mais adiante, continua...
“Ela já se assusta. O homem descanalizou? Mas ele, lacrimoso, se dirige a ela e lhe pede que se deite outra vez, que o receba, corpo de seu corpo, Apolinário se deita por cima dela, com o peso de um simples ocaso, luz que se desnuda sobre outra luz. E se enredam, gementes. Ela se faz carícia até à unha. Ele se ondeia, imitação de mar, espraiação de si. De repente, porém, o homem pára e, de novo, se absorve, longínquo.
- Porquê? Porquê parou?
Já seu avô, Marcelino, tinha morrido em cama mas sem outra doença que não fosse o se avivar com mulher. E ele, Apolinário, fosse canalizador ou mesmo canalista, que outra felicidade lhe irrompera a vida? Que outras paixões lhe acometeriam sua pobre vivência?
- E agora, mulher, estou sentindo que Deus, desta vez, me ouviu mesmo.
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in. Revista "Pública"
de 5.Nov.2000
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