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13 julho 2022

As Vénus feias...

Um texto escrito por
Giovanni Papini
em Moçambique,
num dia 28 de Maio
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Giovanni Papini
(1881 - 1956)
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"Conheci aqui um comerciante e armador português, muitíssimo rico, que vive em Moçambique alguns meses do ano para tratar dos seus negócios. Chama-se Francisco de Azevedo e é uma pessoas atenciosa, de modos francos, óptimo gosto e bela cultura. Há dias, convidou-me para jantar na sua residência, um pouco fora da cidade, onde não tem outra companhia que a dos criados e criadas negros.
Depois de tomarmos o café e de acendermos os charutos, o meu anfitrião, com o ar de quem faz uma confidência preciosa, disse-me:
- Eu passo aqui, mau grado as aparências, uma vida melancólica. A mulher que adorava, morreu; as minhas filhas estão casadas na América. Já não tenho ninguém, não posso querer a ninguém. As mulheres e os homens que vivem nesta ilha, de qualquer raça ou cor, são horríveis, de uma fealdade obtusa que nem sequer têm os traços monstruosos e encantados dos primitivos autênticos. Aqui são todos mestiços, com os vícios da civilização e as misérias do barbarismo. Suporto-os, mas sofro para diminuir o horror desta humanidade disforme tive de buscar ema evasão. Quero mostrar-lhe no que consiste.
Fez-me atravessar duas ou três salas vazias e abriu com uma chave de prata uma porta maciça, embutida de madeiras raras. Acendeu as luzes escondidas no tecto e encontrei-me numa ampla sala redonda, de paredes de um sombrio encarnado pompeiano e cheia de imóveis figuras brancas.
- Veja - disse-me Francisco de Azevedo - é esta porventura a mais rica colecção de Vénus do Mundo. Quis reunir aqui, em cópias fiéis, todas as Vénus que se admiram, espalhadas aqui e além, nos museus e palácios do Velho mundo. Aproveitei as minha estadias nas maiores cidades da Europa para mandar reproduzir por bons artífices estas imagens famosas da beleza ideal. Que lhe parece?
Reconheci, de facto, as mais célebres Afrodites que eu já vira nas minhas viagens: a Vénus de Milo, a Vénus de Médicis, a Vénus de Cirene, a Vénus Capitolina, a Vénus de Celini e a de Canova. e muitíssimas mais que não fui capaz de reconhecer. Algumas não tinham cabeça, a outras faltavam os braços mas todas mostravam a opulência dos seios, o escudo suave do ventre, a bem torneada perfeição das pernas.
Era um espectáculo desconcertante e, até certo ponto,  embaraçoso, aquela assembleia de mulheres alvas e nuas, todas reunidas, algumas delas em atitudes lascivas, outras, ajoelhadas e púdicas; na maioria, erguidas e soberbas, em ar de desafio ou de oferta. Sob a clara luz eléctrica, esta multidão imóvel e cândida, e cabeleiras bem ondeadas, de seios bem modelados, de ancas bem redondas, de braços torneados, não inspirava nenhuma ideia amorosa ou libidinosa, mas sim um estranho confrangimento, que, confusamente, se parecia com o pudor.
Não sabia o que dizer. Não disse nada.
- Compreendo o seu silêncio - disse Francisco de Azevedo. - Entendeu logo o que eu, por um instinto defensivo, senti muito tarde.. Quando contemplamos, na sala de um museu, uma destas célebres Vénus, isolada no seu esplendor, temos a ilusão de estar diante de um milagre de beleza antiga. Quando vi pela primeira vez, em Roma, no museu das Termas, a Vénus de Cirene, na salinha acanhada que ela habita, sozinha, tive o êxtase casto que é dado pela perfeição da beleza. Mas quando, depois, pude reunir aqui, como num templo secreto, todas estas Vénus, já não tornei a encontrar o puro enlevo que prometera a mim mesmo. Esperava que estes monumentos eternos do eterno feminino me consolassem da vista dos seres aviltados e desarmónicos que sou obrigado a encontrar todos os dias. Mas as Vénus, reunidas, já não me deram aquela exaltação intelectual e não carnal que cada uma delas, contemplada por poucos minutos, me concedera. A multidão reunida dos corpos perfeitos gera a saciedade e, quase diria, até a náusea.
"Acabei por fazer, nestes anos,  uma descoberta dolorosa. As Vénus, mesmo as mais celebradas, são feias. A mulher é julgada bela por nós, por ser uma promessa de prazer e de volúpia. Mas se um de nós, tornado velho e sábio, soubesse olhar para estas Vénus com o mesmo gélido alheamento com que um zoólogo examina um vulgar exemplar da fauna terrestre, verificaria que também as Vénus são animais, em nada admiráveis e maravilhosos: a pequena probóscide, que é o nariz, o corte ferino que é a boca, as duas inchações alimentares que são os seios, os glúteos indecentes, que fazem pensar na defecação... Mas não quero insistir. Talvez ficasse mal em lhe mostrar estas fêmeas de mamíferos, de mármore, que os artistas tentaram transfigurar numa abstrata harmonia para nos compensarem dessas, muito mais repugnantes, que todos os dias temos de ver em carne e osso. Desculpe, Mr. Gog , e voltemos lá para dentro para beber mais um cálice de vinho do Porto .
Apesar da coleção de Vénus  - concluiu Francisco de Azevedo -, a minha vida continua triste e desconsolada. Estou reduzido a refugiar-me nos negócios, como outros se refugiam no jogo ou na guerra.
Desde aquela noite não tornei a ver o comerciante português, mas não tenho desejo algum de tornar a vê-lo."
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in. "As Vénus feias", 
um capítulo do "Livro negro",
numa edição de 1951
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NB:             
Giovanni Papini foi um escritor italiano., inicialmente um cético que se tornou num católico fervoroso. A sua obra, "O Diabo" foi tema de grandes discussões e controvérsias. A crítica europeia é de opinião que a sua melhor obra é "Gog", uma coletânea de contos filosóficos, escritos num estilo satírico.
Tenho os melhores livros deste autor italiano:
"Gog", "O livro negro" , "A história de Cristo" e "O Diabo".
(que deviam existir em muito mais bibliotecas...)

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