Germano da Fonseca Sacarrão
Nasceu em Lisboa em 1914 e faleceu com 78 anos vítima de uma inesperada paragem cardíaca. Nas palavras do seu colega e discípulo Prof. Eduardo Crespo (que foi professor de Ciências Naturais aqui no nosso Liceu, em 1965 antes de ingressar na carreira universitária) “a morte ceifou-o, súbita e traiçoeiramente, através do seu ponto mais vulnerável, o seu generoso coração”.
Conheci o Prof. Sacarrão em 1954. Era um homem com 40 anos, com uma leve dificuldade auditiva, que disfarçava muito bem, e com um porte atlético invulgar numa figura académica… As nossas colegas "simpatizavam" imenso com ele, mesmo quando a ciência que debitavam não chegava para satisfazer o “atleta e mestre”, como então nos referíamos a ele.
Era um homem simpático que nos ensinou os programas de Zoologia Geral, num Departamento que era então dominado por uma “fera” que dava pelo nome de J.A.Serra.
Licenciou-se em 1937, em Ciências Biológicas na Faculdade de Ciências de Lisboa e, anos mais tarde, conseguiu uma bolsa de estudo para trabalhar com Celestino da Costa, da Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi com este Professor de Medicina que Sacarrão iniciou os estudos sobre Histologia e Embriologia que viriam a constituir os temas mais importantes do Programa de Zoologia Geral que esteve na base da cadeira que nos ministrou em 1954/55.
Em 1951 iniciou a carreira docente universitária como 1ºAssistente do quadro da FCL.
Em 1959 obteve o título de Professor Agregado em Zoologia e Antropologia.
Em 1960 foi Catedrático sendo então nomeado Professor Catedrático, da 3ª Secção da FCL.
Na perspectiva docente leccionou todos os principais temas das Ciências Biológicas, sendo de “destacar o seu extraordinário poder de comunicação, clareza de exposição, capacidade de apresentação e integração de conceitos, entusiasmo (e humor…) e as excelentes, pode mesmo dizer-se excepcionais para a época, relações pessoais que sabia estabelecer com os seus alunos” (cfr. Eduardo Crespo).
Era “muito cioso da sua independência criativa, opunha-se fortemente a todos os constrangimentos impostos por políticas científicas (…) tecnocráticas e mercantilistas … dado que ao longo da sua carreira aprendera a trabalhar com poucas verbas, recorrendo sobretudo à sua cabeça, podia resistir com relativa facilidade a tais políticas e podia, e preferia mesmo, trabalhar sozinho.”
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Recordo com muita saudade e ternura duas situações que me confrontaram com este nosso professor… “Atleta e Mestre”.
1 - Na primeira tratou-se de uma situação de Professor – Aluno.
No decurso do meu segundo ano na Faculdade tive o Professor Sacarrão na regência de cadeira de Zoologia Geral. Creio que já no 2ºPeríodo, depois de umas “ensaboadelas” sobre Histologia em que nos socorríamos dos livros de Celestino da Costa, deparámo-nos com o capítulo da Embriologia.
Nas aulas, todos nos esforçávamos por captar todas as palavras que o “atleta e mestre” proferia… mas a tarefa tornava-se difícil quando nos mostrava, desenhado no quadro (ou já em rectro-projecção?...), os cortes embriológicos que acompanhavam a sua exposição…
No final de uma das primeiras aulas, acompanhado pelo José Pinto de Figueiredo, que mais tarde foi Presidente da AE, fomos falar com o Prof. Sacarrão e expusemos-lhe as dificuldades que sentíamos com a falta de gravuras que acompanhassem o nosso estudo. Atendeu-nos como se de “colegas” se tratasse e sugeriu-nos a organização de uma sebenta, a ser vendida na Secção de Folhas da AE!!...
Nós captaríamos as suas palavras nas aulas teóricas, passaríamos a limpo e em letra legível os “gatafunhos” assim obtidos e ele faria com a regularidade desejada a revisão do nosso trabalho. Forneceria ainda as desenhos dos cortes embriológicos que acompanhariam aquele texto.
Eu e o Zé Pinto olhámos um para o outro e, depois, para o Professor! Um momento depois tínhamos aceite a incumbência…
O nosso trabalho foi imenso!... E foi um trabalho insano…
E o que menos trabalho nos deu foi a recolha das palavras e a sua “tradução” para uma escrita decente e legível… Nem o trabalho de dactilografia nas “inimagináveis” folhas de “stencil” que a D.Helena da Secretaria da Associação de Estudantes nos ajudava a passar, nos deu muito trabalho… Mas já imaginaram o trabalho que tivemos para copiar, nas mesmas folhas de “stencil”, as figuras dos embriões de galinha nos mais diversos cortes transversais e longitudinais… apenas munidos com uns “estiletes” fininhos que nos ajudavam a perfurar, com uma cautela enorme, a cera daquelas folhas?!...
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Se bem me lembro, eu e o Zé Pinto, fizemos uma “obra asseada”… Obra que nos valeu uma Amizade enorme por parte de um Professor que pouco gostava de trabalhar em grupos… O convívio quase diário que tivemos com o Professor Sacarrão é algo que não se esquece facilmente… Que nunca mais se esquece!
Era um Livro de capa cartonada, com o Título de “Lições de Embriologia Geral”, que recebemos como oferta, após a sua edição, por sugestão à Secção de Folhas da Associação de Estudantes, feita pelo Professor Germano Sacarrão.
Tenho uma pena imensa de já não possuir esse livro… Não devemos emprestar a ninguém algumas das coisas que nos pertencem… e pelas quais sentimos um especial carinho!
Nesta publicação é citado o livro de 1956, "Lições de Embriologia Geral" - Ed. Assoc. Est. Fac. Ciênc. Lisboa, com a seguinte nota:"Parte das figuras publicadas nestas Lições foi reproduzida neste artigo"
2- A segunda situação aconteceu ainda no âmbito Professor – Aluno. Mas foi já uma relação de trabalho.
Entre Outubro de 1956 e Outubro de 1958, estudei no Porto. E ali teria terminado o Curso… não tivesse acontecido ter “chumbado” em Física Geral… a última cadeira que me faltava fazer!… Que vim repetir em Lisboa…
Com 23 anos… outra vez em Lisboa… com aulas só dois dias na semana… acho que foi providencial um encontro que tive com o Professor Sacarrão no “corredor comprido” da Faculdade de Ciências, lá perto da área das Zoologias! Ao ver quem já não via há dois anos, o Professor quis saber mais coisas sobre mim. Numa breve conversa ficou a saber o atraso que para mim significava aquele ano… sem fazer quase nada! Pouco depois estava a perguntar-me se eu queria ocupar o meu tempo com…trabalho!... E sugeriu que havia a hipótese de eu ocupar um lugar no Instituto de Medicina Tropical que era dirigido, naquela época, pelo professor Fraga de Azevedo.
Dois outros investigadores seus amigos ali trabalhavam, Bragança Gil e Carvão Gomes. Foi com um deles, o primeiro, que o Prof. Sacarrão contactou para lhe falar em mim e foi com Bragança Gil que acabei por me entender quando me apresentei no Instituto uns dias mais tarde, numa manhã de Outubro, depois de percorrer a pé toda aquela distância da Politécnica até à Junqueira…
As coisas ficaram aprazadas e eu apresentei-me durante os dias que se seguiram. Pouco tempo depois fui chamado aos Serviços de Secretaria para ser informado que não havia “provisão” para o pagamento dos meus honorários e que só no Orçamento do próximo ano seria viável a respectiva inscrição… E, mesmo assim, sem a certeza de a verba poder ser inscrita no orçamento…
Agradeci a oportunidade que me queriam dar mas não pude aceitar a proposta que me faziam… Falei mais tarde com o Professor Sacarrão a quem contei o sucedido. Concordou com a minha decisão e acho que ficou um pouco incomodado com a proposta que me quiseram fazer. De qualquer modo fiquei grato ao meu professor de Zoologia Geral que, dois anos passados, quis ser gentil com um dos seus alunos e… “ex-colaborador”.
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Germano da Fonseca Sacarrão era um Amigo de Setúbal. Vinha aqui com frequência. Por várias vezes, na época da Primavera/Verão, o vi aqui na Baixa da cidade, passeando com ar desportista e fugindo do ambiente académico da Universidade de Lisboa…
Morreu novo… de espírito!
...e ninguém lhe daria os 78 anos que tinha quando a Morte chegou para o levar…
(Na organização deste apontamento recorri, pontualmente, a um texto da autoria do Professor Eduardo Crespo, do Departamento de Zoologia e Antropologia, da FCUL (e nosso antigo colega no Liceu de Setúbal, na década de 60) transcrito no livro "Memórias de Professores Cientistas", Ed.FCUL - 2001)
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