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"Ler sobre a "santa trincadeira"
é o título do artigo que, no seu "Espaço Público"
José Pacheco Pereira
escreveu ontem no jornal "Público".
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José Pacheco Pereira
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Uma pessoa às vezes tem sorte e conhece na vida algumas personagens que
pareciam apenas estar nos romances. Nos tempos em que estive em Boticas a dar
aulas, bendizendo estar tão baixo na lista dos professores que fui parar àquele
magnífico sítio, conheci algumas. A escola era pequena, pelo que acabava por
dar por dar aulas a praticamente todos os alunos e conhecer todos os
professores e o pessoal administrativo da escola. A maioria dos professores que
lá estavam colocados maldiziam a sua sorte, porque era o último sítio onde
queriam estar e, à mais pequena oportunidade, queriam era vir-se embora. Não
era fácil nem lá chegar, nem de lá sair porque todas as opções de estrada para
o Porto demoravam pelo menos cinco horas…
(…)
Eu ficava muitas vezes no fim-de-semana porque gostava de lá estar numa
casa de emigrante alugada… A casa era nova, mas a construção era má e incluía uma
parede de “pedra rústica” e um andar térreo de terra batida onde se colocava a
lenha. Depois, por cada racha na parede entrava vento e frio, e ali havia mesmo
frio mas as janelas – quando se conseguiam abrir – mostravam uma paisagem de
montes e vales, sem ventoinhas, e com muito poucas construções modernas no meio
do verde. Às vezes, havia uma nuvem pousada mesmo debaixo da janela. Descia-se
e estava nevoeiro e subia-se e estava um sol esplendoroso.
Um dos meus colegas era a tal personagem da literatura, que muitos podem
adivinhar como sendo tirada dos livros de Aquilino. Já faleceu e deve estar no
Céu a ser servido por um anjo despenseiro das cozinhas do paraíso. Sim, eu devo
a Boticas ter conhecido um genuíno abade, na verdade um padre que dava aulas na
escola e exercia o seu trabalho pastoral nas aldeias altas do Barroso, Alturas,
Dornelas, até à fronteira com o Larouco. Tinha um “corpanzil”, uma palavra que
me evita usar eufemismos ou expressões pouco politicamente correctas, e uma
enorme sotaina para o tapar. Nos dias em que dava aulas, íamos almoçar juntos a
um restaurante que também vinha na literatura, o Santa Clara, neste caso,
referido por Ferreira de Castro. O restaurante era de uma senhoras que cozinhavam
praticamente ao lado, traziam ela próprias a comida à mesa e das quais pouco
sei a não ser que tinham parentes no Canadá, porque me pediam para lhes
traduzir uns formulários de inglês que tinham de preencher.
Mais uma vez, o almoço podia vir nos livros de Aquilino e eu, que já
conhecia algumas descrições aquilinianas, como o ataque a vários capões por um
bando de abades ao pequeno-almoço. Sabia muito bem onde estava metido. Não
havia muita variedade, mas também não era preciso. O almoço-tipo consistia em
pedaços de bola de presunto, às vezes acompanhados por fatias de presunto, de
entradas, seguidos por uma sopa de legumes, a que se acrescentavam de imediato
umas trutas. E ainda estávamos só nos preliminares, faltava o prato principal.
Este era quase sempre vitela assada com batatas e arroz, ou frango assado com
batatas e arroz e salada. O nosso bom padre comia tudo e, por isso, também a
salada. Depois vinha a sobremesa, a maioria das vezes um pudim e uns doces
caseiros, melhor, um pudim, mais uns doces caseiros e café. Vinho, ele não ia
no “vinho dos mortos”, que dizia que era para os turistas, antes preferia a
variante do barril, servida em caneca, ou melhor, em canecas. Dar aulas a
seguir era um tormento.
Não se lhe podia dizer que não a coisa nenhuma, porque ele insistia já
com o garfo ou a colher cheia junto ao prato dizendo “ó senhor professor, tire
um pouco mais de carne…”. E eu obedecia ao eclesiástico, ungido por um
sacramento especial, que eu não tinha nem queria ter, mas à mesa impunha
autoridade. Era o tempo da “santa trincadeira”;
Ocupemo-nos da santa trincadeira,
que o meu estomago está a gritar contra a cabeça que o governa! – proferiu o
abade, ajeitando o corpanzil à margem da mesa opípara.
O problema é que a descrição parece demasiado trivial nestes tempos em
que as sardinhas “repousam no seu suco” e as coisas são “resumidas”. Só que o
presunto era de Chaves, as trutas do Beça, as batatas, que quem nunca as comeu
não sabe o que são batatas, idem para a carne do Barroso. Já comi em muitos
sítios, mas presunto, trutas, batatas e carnes são deste planeta e as de Boticas
eram de outro corpo celeste regido por Gargantua e seu filho Pantagruel.
Voltemos à terra. Deixem a Covid-19 à porta, leiam Aquilino e façam a
festa de língua portuguesa em casa.
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