é o título da crónica que
João Miguel Tavares
escreveu na sua coluna do Público
publicada ontem no "Público".
João Miguel Tavares
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O comportamento de Serena Williams na final do Open dos Estados Unidos está a dar muito que falar em todo o mundo e tem recebido especial atenção entre nós, devido ao envolvimento do árbitro português Carlos Ramos. Há questões que são para serem debatidas pelos especialistas da modalidade – deve ou não o coaching ser autorizado num jogo de ténis; foi ou não o árbitro português pouco tolerante na sua primeira admoestação –, mas há uma outra questão, bem mais funda e importante, que diz respeito a todos nós e àquilo que se está a tornar um terrível tique social do século XXI: o vício da vitimização.
De repente, a discussão não é simplesmente sobre se o comportamento desportivo de Serena Williams é aceitável ou não, ou se a decisão do árbitro português foi ou não a mais correcta. Aquilo que o mundo discute é até que ponto o comportamento de Serena se justifica por ela ter atrás de si uma história de sofrimento e humilhação por ser negra num desporto maioritariamente de brancos – e portanto aquele teria sido um grito compreensível de revolta racial –, e se as decisões de Carlos Ramos não foram especialmente duras por ela ser mulher – e portanto aquele teria sido um compreensível grito de revolta sexual. Fosse Serena Williams lésbica e alguém já teria com certeza denunciado Carlos Ramos por comportamento homofóbico, completando o bingo das políticas de identidade, que no seu desejo descontrolado – e totalitário – pela igualdade têm vindo a construir um mundo profundamente discriminatório, onde certas características biológicas recuperam uma proeminência contra a qual as correntes mais progressistas lutaram desde sempre.
Quando, em 1956, Althea Gibson (que ainda foi treinadora de Venus e Serena Williams) se tornou a primeira tenista negra a ganhar Roland Garros, ela certamente ambicionaria que a considerassem em primeiro lugar uma tenista como qualquer outra, independentemente da sua cor. Mas hoje em dia, mais de 60 anos depois, Serena Williams está condenada a ser em primeiro lugar uma mulher negra, e só depois tenista. É mesmo este o mundo em que queremos viver? Durante séculos, senão milénios, os negros lutaram para que a sua cor de pele não fosse relevante; as mulheres lutaram para que o seu sexo não fosse motivo de opressão; os gays lutaram para que as suas preferências sexuais dissessem respeito só a eles. E no momento em que vivemos no mundo mais igualitário de sempre – certamente não tão igualitário como gostaríamos, mas indiscutivelmente igualitário como nunca antes foi –, eis que os alegados progressistas do século XXI vêm garantir-nos que, afinal, a cor da pele, o género ou a preferência sexual são as principais características identitárias dos seres humanos. O discurso anti-racista de hoje é demasiado parecido com o discurso racista de antigamente.Daí decorre o vício da vitimização. Serena Williams não é apenas uma tenista que não soube perder. Agora ela é uma vítima. Vítima por ser mulher. E vítima por ser negra. O valor da vitimização supera o valor do próprio desportivismo. Antigamente, desportivismo era sinónimo de saber perder (mesmo quando a derrota era injusta), aceitar a decisão de um árbitro (mesmo quando essa decisão estivesse errada), aprender a lidar em campo com a injustiça (por muito que isso nos custasse). Eu não sei quando é que aquilo que era sinónimo de força interior passou a ser um sintoma de fraqueza. Mas sei que antes estávamos certos, e agora estamos errados.
in "Público"
11 de Setembro
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