Um artigo de João Cordeiro
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"As medidas arrasadoras que o Governo decidiu recentemente em relação às farmácias não decorrem do Memorando"
João Cordeiro
"Um novo Governo é sempre um motivo de esperança renovada para os cidadãos.Com o actual Governo também assim é.Na área da saúde, a esperança de que, finalmente, vai ser posta ordem na casa é muito elevada. Estamos entre aqueles que depositam muita esperança numa reforma profunda da área da saúde.
Reformar a saúde é, acima de tudo, estancar a hemorragia de recursos consumidos por uma máquina complexa, numerosa e ineficiente de instituições públicas, gerida por critérios políticos, sem concorrência nem avaliação, que continuam a consumir anualmente dezenas ou centenas de milhões de euros ao Orçamento do Estado.
A reforma do sector público da saúde é difícil e exige muita coragem. Se não for feita agora, não será feita nunca. No passado, os Governos sempre que tiveram défices orçamentais na área da saúde tentaram resolvê-los à custa do sector privado. O sector público da saúde manteve-se intocável. A circunstância de o Estado ser financiador, regulador e prestador criou o monstro que hoje existe. A sucessiva falta de recursos do Estado para satisfazer a despesa, tem tido como vítima o sector privado da saúde, através da redução de preços e da actividade contratada.
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Os medicamentos têm sido o bombo de festa. O Estado, quando não tem dinheiro, baixa os preços dos medicamentos que ele próprio fixou e de que ele próprio é o grande consumidor! E fá-lo sem qualquer cerimónia ou preocupação pela vida das empresas que exercem actividade na área da saúde. Quando menos se espera, o Estado surpreende-nos com uma decisão cega de redução de preços e margens, sem qualquer avaliação do seu impacto nos sectores de actividade.
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Nos últimos cinco anos, a descida dos preços tem sido contínua e como se vê o défice da saúde, em vez de diminuir, aumentou. Mas, mesmo no caso dos medicamentos, o Estado tem dois pesos e duas medidas. A despesa com medicamentos no sector privado é alvo de reduções sucessivas, enquanto a despesa com medicamentos no sector público, nos hospitais do SNS, nunca foi alvo de qualquer redução. Porquê?
(...)
O Memorando assinado com a troika deve ser cumprido, mas não pode ser instrumentalizado. Deve ser cumprido porque dele depende o futuro do país. Enquanto presidente da ANF e enquanto cidadão, sempre garanti a este Governo que as farmácias cumpririam esse acordo. E estão a cumpri-lo. O Memorando exige, em 2011, uma poupança das despesas de saúde de 550 milhões de euros. Ora, a despesa do Estado com medicamentos no sector privado, no período de Janeiro a Setembro, já contribuiu com uma poupança de 330 milhões de euros.
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No final do ano corrente, a redução da despesa com medicamentos no sector privado atingirá mais de 400 milhões de euros, dos quais 80 milhões serão contribuição das farmácias. Ora, a contribuição exigida pela Memorando às farmácias e aos grossistas, no seu conjunto, é de 50 milhões de euros. Mas o Governo, com a recente revisão do regime de preços e margens dos medicamentos, vai impor às farmácias uma contribuição três vezes superior! E fê-lo de forma igual à dos Governos anteriores.Em curto espaço de tempo, sem diálogo com as farmácias e os seus representantes, o Governo tomou decisões altamente penalizadoras, que significam a destruição do sector. E não se limitou a reduzir preços e margens nos medicamentos que afectam a despesa pública. Fê-lo mesmo naqueles medicamentos que não são comparticipados!
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Não se conhecem quaisquer estudos sobre o impacto destas medidas. Nem vemos nas posições oficiais sensibilidade aos riscos de destruição do sector de farmácias. Só vemos sensibilidade, mesmo uma hipersensibilidade, a boatos de que as farmácias iriam cortar o crédito ao SNS, como retaliação contra a redução das margens, medida que não esteve sequer na agenda das farmácias nem dos seus representantes.
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Assinalo a diferença de tratamento entre o sector público e o sector privado. Nos hospitais, onde a despesa com medicamentos continua a crescer, nomeiam-se comissões e adiam-se as medidas. No sector privado, onde a despesa continua a descer drasticamente, as medidas são rápidas e não carecem sequer de avaliação do seu impacto nos respectivos sectores. Esta visão política e este modelo de Governo levou já as farmácias à beira da destruição.Aqueles que acham que estamos a fazer demagogia e a empolar a situação de crise devem visitar as farmácias e falar com os seus proprietários, com os seus fornecedores e com os bancos que as estão a financiar. É, por isso, inaceitável que o Governo, a pretexto dos compromissos internacionais do Estado Português, tenha ido muito mais além do que nos é exigido pelo Memorando celebrado com a troika. Esse Memorando, que deveria constituir um factor de união entre o Governo e o país, no nosso caso entre o Governo e as farmácias, foi transformado num factor de divisão e instrumentalizado para justificar tudo e o seu contrário. As medidas arrasadoras que o Governo decidiu recentemente em relação às farmácias não decorrem do Memorando da troika. Decorrem de uma decisão política interna, que lamentamos, para a qual não contribuímos e sobre a qual não fomos ouvidos. Se continuarmos por este caminho, quando tivermos de emendar a mão, será tarde. É por isso que não queremos participar nesta caminhada."
Presidente da direcção demissionária da Associação Nacional de Farmácias (ANF)
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