...escrito num dia de Ano Novo,
em 1 de Janeiro de 1994
.
1. Há um louco no Bonfim!!...
Há um louco à solta, no Parque do Bonfim!!...
São 9 horas do dia 1 de Janeiro de 1994!...Dorme-se ainda, naturalmente, para recuperar da noitada mais ou menos prolongada a que toda a gente se atreveu.
Estão desertas as ruas!
De onde em onde, muito de onde em onde, um carro passa quase sem barulho, como que a pedir desculpa de andar na rua àquela hora...
Está deserto o parque do Bonfim... Também o tempo não ajuda, não admirando que venham a cair algumas pingas dentro em breve...
A esta hora, provavelmente estará encerrada a Casa de Chá do Parque do Bonfim, tal como os quiosques de venda de jornais que circundam o parque e o tempo não está para bancos de jardim... mesmo que já fosse meio dia...
A menos que se trate de um caso de cibernética...
A menos que se trate de um caso de automatismo...
A menos que se trate de um caso de comando à distancia...
Nesse caso o louco não deambula no parque do Bonfim, mas em qualquer outro local onde é forçoso ser procurado!... E entregue a um Instituto de Sanidade Mental...
2. Contava-se há muito tempo, quando eu era rapaz e estudava ainda, que havia em Coimbra um homem marreco, que fazia pela vida remendando uns sapatos, pondo-lhes umas meias solas ou aumentando-lhes o tempo de vida com umas gáspeas lisonjeiras e cuja corcunda era o alvo dos dichotes de uns quantos passantes atrevidos e insensíveis...
O pobre homem, humilde e sem remédio... aguentava o que podia e lá ia carregando a sua cruz... daquela maneira incómoda...
Até que um dia, farto de ouvir o que não queria, numa insistência sem dignidade, resolveu num momento de fortaleza que não tinha, agarrar na forma de ferro, e espetar com ela, na cabeça do mal formado mental que o agredia impiedosamente, sem motivo algum...
O julgamento, que se seguiu à prisão do marreco, foi paradigmático, no processo de defesa...
O causídico ilustre, chamado à defesa do remendão, iniciou a intervenção, naturalmente dirigindo-se ao Tribunal, com um propósito e um respeito maiores ainda do que o habitual.
"Meritíssimo Juiz
Exmº Representante do Ministério Público
Minhas Senhoras e Meus Senhores..." ,
após uma pausa prolongada, repetiu
"Meritíssimo Juiz
Exmº Representante do Ministério Público
Minhas Senhoras e Meus Senhores..."
De novo, a pausa..., agora um olhar circundante, envolvendo todo um auditório que enchia a sala das audiências que abarrotava... e, de novo, olhando nos olhos o Juiz que presidia
"Meritíssimo Juiz
Exmº Representante do Ministério Público
Minhas Senhoras e Meus Senhores..."
... e quando, depois de mais duas ou três repetições, o Meritíssimo, um tanto agastado, lhe pergunta se se tinha engasgado e o convida a prosseguir na defesa, o causídico apenas lhe responde:
"Meritíssimo Juiz
A defesa desta pobre Homem está feita e foi V.Exª quem acabou de a fazer!!...
Ao agastar-se por ter ouvido, em três escassos minutos, meia dúzia de palavras, repetidas outras tantas vezes, e em nada ofensivas, à Sua Dignidade, só e apenas porque as repeti por três ou quatro vezes imagine V.Exª o calvário deste Homem que durante uma vida inteira ouviu e sofreu os vexames de um indivíduo sem escrúpulos, sem dignidade e sem alma... "
Não sei qual foi a sentença...
Nem sei se é verdadeira a História...
...mas, se non é vero, é bene trovato...
3. Sempre fui da opinião que o interesse pela leitura deve ser incutido nos jovens tão cedo quanto possível e em doses suaves mas progressivamente crescentes, não vá surgir qualquer "indigestão"...
Nunca se deveria "obrigar" uma criança a ler um livro e nesse aspecto torna-se por demais evidente que a escolha das sugestões de leitura tem uma importância fundamental.
Creio ser ainda de caracter obrigatório a leitura de algumas obras de autores portugueses que se processa nas nossas Escolas secundárias e sobre as quais paira sempre a perspectiva da prestação de provas de conhecimentos que transcendem o simples prazer da leitura.
Ora, como os testes, por melhores que os nossos jovens sejam, são encarados, quase sempre, como um "grande frete", como um "grande castigo", lógico será admitirmos que a leitura de uma obra de um qualquer autor português se torna uma coisa a esquecer o mais rapidamente possível, e tanto mais quanto pior for o resultado do teste...
O gosto pela leitura há-de regressar mais tarde, se for caso disso e, se não por outros motivos, pelo menos que sirva para, nas manhãs de segunda feira, através das peças dos jornais desportivos, se por em dia com os golos marcados pelo jogador da nossa preferência...
Não é por acaso que aqueles são os jornais que apresentam as maiores tiragens, em Portugal...
4. Vêm estas palavras a propósito do sistema musical que, talvez em Novembro, foi posto a funcionar no Parque do Bonfim... presume-se que para deleite dos utentes que frequentam o dito...
Teria sido, por entre outras coisas, para prestar uma homenagem devida ao nosso bom Amigo Senhor Antonino Pestana?...
O senhor Pestana era um Homem bom e cuidadoso. Melómano?!... Sim, enorme... mas com a exacta consciência da finalidade do seu trabalho. Horas seguidas, de madrugada, sozinho, escolhendo e gravando as peças musicais, para transmitir durante o dia, numa idade em que devia ter já começado, há muito, a preocupar-se com a sua saúde.
A transmissão, sempre a horas certas, era impecável e o volume sonoro sempre abaixo dos decibéis "permitidos por uma lei" que nem sequer ainda existia...
A renovação musical que ele próprio executava e lhe saía do corpo nas frias madrugadas, de muito inverno passado..., a limitação temporária que ele mesmo se impunha à emissão da sua
gravação diária, em cada dia passado no Parque do Bonfim... era a prova do seu saber, a prova do seu cuidado, um acto de pedagogia.
O bom senso que nunca o abandonou, embora muito Amigo que era da Música, ao não permitir que quaisquer outras pessoas, ou por não quererem, ou por não gostarem ou por não suportarem imposições de caracter musical ou ainda por não estarem afins, quando em casa trabalham nos seus afazeres ou repousam do trabalho de um semana, pudessem de algum modo sentir-se agredidos por uma música que não pediram para ouvir e que eventualmente os virá a
saturar, apesar da luminosidade, e da alegria, e do arrebatamento de uma "Scheherazade" de Korsakow ou de um "Capriccio" de Tschaikowsky que nos saturámos de ouvir... durante quase todo o mês de Dezembro, invariavelmente das 9 horas da manhã até, muitas das vezes, depois das 22 horas... durante todos os dias da semana, ao Sábado e até ao Domingo!!...
Quer dizer, num caso destes o remédio pode matar... pelas doses maciças e repetidamente obrigadas a tomar por via da ausência de defesa por parte do doente...
É o caso dos nossos alunos aprendizes de leitor... no que respeita à obrigação de ler o que lhes impõem...
É o caso do sapateiro de Coimbra...( e do seu Patrono...) no que diz respeito a à insistência e à repetição dos acontecimentos...
É o caso do nosso saudoso Amigo Sr.Antonino Pestana que, sem uma lei que havia de vigorar muitos anos após o seu tempo, já a cumpria, guiado apenas, e tão somente, porque tinha um poucochinho de bom senso...
São neste momento 14 horas e 30 minutos.
Lá fora a música do Parque do Bonfim continua... em grande forma, os decibéis do costume...
Dois rapazotes esperam, sentados no banco da paragem, o autocarro que teima em não chegar...
Passos incertos, mais além, pensando sabe Deus em quê, um Homem atravessa a rua, sem olhar o transito, que não existe... Vai a caminho do Parque... quem sabe atraído pelas canções da quadra festiva que decorre...
Ou será o louco que volta para terminar com esta loucura musical à prova de controlo remoto?...
Fico esperançado... e sigo, com os olhos ansiosos, o seu andar... Perdeu-se, agora, por entre os ramos despidos das folhas que não vejo... também elas fugindo, certamente, à sanha musical que
invadiu o seu recanto...
Um pouco mais à frente, por detrás do edifício da Casa de Chá do Parque (será que ainda é conhecida por este nome tão lindo?...) vejo erguerem-se e baixar de novo, em seguida, num baile lindo de ver, os jactos dos repuxos do lago renovado, numa incerteza constante sobre o momento final do seu bailado. Será que também eles, os repuxos, anseiam pelo final daquela melodia sem fim?...
Não posso crer!... Não acredito!...
É a melodia interrompida!
Pelo "nosso" Homem que chegou...
Há dois minutos que Parque não gera um único som!...
Não emite um gemido sequer...
É a Esperança renovada de uma soneca de tarde, de uma "siesta" retemperadora do pouco tempo dormido, gasto a ver, num desperdício de tempo tão pessimamente gerido, três meninas a cantar até as tantas da matina, as mais famosas "Canções do Século"...
Mas está bem!
Vou recuperar de tarde...
Vou, finalmente, pôr o sono em dia...
Vou, finalmente, dormir um pouco mais!!...
Esperança perdida... espectativa gorada...
Acudam!... O Homem..., o louco..., acabou de ligar a cibernética!... Acabou de ligar, de novo, o brinquedo que dá música!!
Voltou o disco!... Rebobinou a fita!!...
...e está a tocar a mesma!!!...
SOCORRO!!!!... Srª D.Paula Costa !!!!...
.
Setúbal, em
01/01/1994
Às 15h:40m
Há dois minutos que Parque não gera um único som!...
Não emite um gemido sequer...
É a Esperança renovada de uma soneca de tarde, de uma "siesta" retemperadora do pouco tempo dormido, gasto a ver, num desperdício de tempo tão pessimamente gerido, três meninas a cantar até as tantas da matina, as mais famosas "Canções do Século"...
Mas está bem!
Vou recuperar de tarde...
Vou, finalmente, pôr o sono em dia...
Vou, finalmente, dormir um pouco mais!!...
Esperança perdida... espectativa gorada...
Acudam!... O Homem..., o louco..., acabou de ligar a cibernética!... Acabou de ligar, de novo, o brinquedo que dá música!!
Voltou o disco!... Rebobinou a fita!!...
...e está a tocar a mesma!!!...
SOCORRO!!!!... Srª D.Paula Costa !!!!...
.
Setúbal, em
01/01/1994
Às 15h:40m
... e a música continua!
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J.J.M.Matos
J.J.M.Matos
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