De 13 a 30 de Setembro de 1941, Miguel Torga “esteve a águas”,
nas Termas de Monfortinho. Foi lá que
escreveu um texto, que eu acho muito curioso, em vésperas do seu regresso a
Coimbra, no dia 29 de Setembro.
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“Bem me queria ir embora destes ermos sem tocar na pessoa
mágica de um velhote que encontrei aqui, e de quem desejava guardar
secretamente a imagem luminosa para a ter comigo quando a alma caísse na
escuridão da grande noite da outra vida. Mas eu sou um pobre artista com
quantas desgraças a palavra anda carregada. Por isso não fui capaz de resistir.
E lá vou mexer-lhe com as minhas mãos impuras.
É um sujeito baixo, magro, com cabelos brancos e voz suave.
Anda como os sonâmbulos, e cumprimenta como quem saúda formigas ou palha-triga.
É médico.
- Vossa Excelência veio então dar um passeio até ao nosso
Monfortinho!
- Um passeio, não é bem…
Para passeio é um bocadinho longe de mais… Mas como parece que as águas dão qualquer
coisa nas doenças hepáticas…
-Qualquer coisa?!
-Sim, dizem que na verdade… De resto eu não tenho a certeza
de ser um hepático. Presumo…
- Presume?! O senhor, um temperamento seco, hiposténico?!
Parei. Seria outra vez o Hipócrates cá neste mundo?
- É que numa dosagem que fiz da bilirrubina, o fígado…
- Diga o chefe da banda… diga o chefe da banda…
- O chefe da banda?!
- O chefe. Temos depois os músicos: o pâncreas, o baço… Ora o senhor sabe por experiência que
quando o chefe da banda não rege bem…
- Na verdade…
- Vai-se a música às violas.
Olhei-o fixamente a ver se uma areia de ironia quebrava o polido
de tão estranha candura. Nada. Puros,
sérios, os seus lábios iam rezando a ladainha. Enterneci-me.
- E então Vossa Excelência aconselha-me …?
- Pomada de unha, senhor, pomada de unha.
- Pomada de unha?!
- Ah! Não sabe?! Desconhece que o sabão, derretido na água,
se a pele está como deve estar, em carne viva, com os poros desobstruídos, entra
imediatamente nos canais biliares e faz uma lavagem completa das células engorduradas…?!
- Sim?!!
- Pois! Umas águas maravilhosas,
estas! Pomada de unha, senhor, pomada de unha!
Não era um homem que estava na minha frente. Era uma alma
branca, a olhar-me e a transcender a realidade através de mim.
- E dieta? – tentou ainda o meu corpo vivo.
-Tudo. Pode comer tudo.
Numa defesa intuitiva, lamentei-me:
- Mas é que os meus intestinos…
- Os intestinos, desde que o chefe da banda…
Os olhos dele eram agora altos, azuis e distantes como o céu
para onde lhe partira em tempos uma filha. E eu, então, despedi-me
discretamente, sem o acordar, a ver se trazia dali uma centelha daquela luz
mágica e puríssima, para um dia ter comigo na eternidade.
Trouxe-a realmente, mas por desgraça, não a pude guardar.”
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Miguel Torga
In.”Diário II”
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