...num conto de Ano Novo.
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Anno Domini
Faíza Hayat
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Faíza Hayat
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Conheci Dom Deusdado apenas porque, uma vez, me apeteceu
entrar no Ano Novo na companhia de um desconhecido. Apenas para não estar com
ninguém mas apenas para também não estar sozinha.
“Posso perguntar a Dom Deusdado”, disse-me uma amiga
andaluza que lecciona na mesma universidade de Barcelona.
“Talvez ele possa receber-te. Dom Deusdado está quase sempre
sozinho. Especialmente no Natal. Ele e as suas árvores de Natal”.
E estava, também nesse ano.
Dom Deusdado tinha uma voz de 30 anos mas as suas mãos
contavam que ele era bastante mais velho. As mãos tinham 60 anos – pelo menos.
Pareciam talhadas à podoa. Toscas. Não toscas, talvez, mas duras. Secas na
casca, rudes nas linhas.
Fiz-lhe notar isso quando ele me recebeu à porta da grande
casa, num “cerro” afastado de uma aldeia de Navarra ”O senhor tem mão de…”
Não consegui encontrar a referência certa para tanta
rugosidade nas mãos de Dom Deusdado.
“Videira?”, perguntou ele, bastante sério, não sei se
ofendido. “Você, pelo contrário, tem mãos de bambu”, disse ele. “São muito
leves e muito fortes. Aposto que eu conseguiria quebrá-las”.
“É por causa dos nódulos?”, quis perguntar, imaginando umas
dores terríveis nos meus ossos, quebradiços no frio de Dezembro, umas dores
menos terríveis do que a minha vaidade a quebrar como gelo, olhando as minhas
falanges pronunciadas.
“Não. É por causa da humidade”, respondeu Dom Deusdado. “As
minhas mãos têm raízes de chuva. Mas é uma chuva quente”, disse ainda Dom
Deusdado.
“Você é mesmo portuguesa? Ou veio de outra floresta?”
Cheguei à quinta de Deusdado um dia 30 de Dezembro,
anoitecia já.
“Esperanza mostra-lhe o quarto. Jantará sozinha porque eu não
janto com estranhos. Amanhã visitamos o pomar”.
Segui Esperanza, uma velha silenciosa cujo único detalhe
colorido era o alfinrte de turquesa que segurava um penteado elaborado, muito
alto.
Foi Esperanza que, no dia seguinte, me acordou, entrando
pelo quarto sem bater. “O Senhor Deusdado espera a Senhorita no pomar”.
Deusdado esperava por mim, no final do caminho onde as
pegadas dele estavam ainda impressas num lençol de geada espessa. As pegadas de
erva molhada acabavam num portão que dava para uma espécie de… cemitério.
Deusdado não calçava muito grande e andava com os pés para
dentro. Via-se nas pegadas.
Estava ajoelhado na geada diante de uma amendoeira. Levantou-se
e sacudiu os joelhos quando percebeu a nossa presença. Esperanza retirou-se e
ele iniciou a visita.
“O pomar é cemitério da família”, explicou Dom Deusdado.
Dentro de um velho muro, havia dispersas árvores, alinhadas,
todas nascendo de um monte de terra coberto com grandes seixos.
Em cada árvore, notei depois, havia pequenos retratos
pendurados de um prego.
Algumas árvores, notei também, sangravam seiva ou resina no
sítio onde o prego entrava no tronco.
“São os meus antepassados”, continuou Deusdado. “Todos
estamos aqui”.
“Um pouco de todos eles germinou em mim”, respondeu Dom
Deusdado em voz ríspida, como se eu tivesse falhado uma evidência.
“Um pouco da morte de cada um deles germinou em cada uma
destas árvores. Todas as gerações dos Deusdado estão sepultadas aqui. Em cada
uma planta-se uma árvore de acordo com a memória que deixou aos vivos”.
“Aliás, depois deles nada restou. Não acreditamos na vida
para além da morte. Só acreditamos na natureza. Os ciclos, sabe: a única
ressurreição não é da carne de Cristo; é das tábuas da cruz…”
Dom Deusdado sondou as nuvens.
“Vai chover”,
Dom Deusdado herdou riqueza suficiente para dedicar todo o
seu tempo ao que as outras gerações fizeram antes dele: cuidar do seu horto
genealógico.
Em segredo, partilhado por toda a aldeia, os Deusdado são
enterrados sem caixão, “porque as tábuas que interessa não são as que morrem connosco mas as que nascem de nós”.
Esperanza pigarreou, encolhida junto ao portão.
“Se for verdade que temos alma, o único sítio para onde ela
vai não é para o céu. É para a terra onde nos desfazemos”, explicou Dom
Deusdado.
A ceia de Ano Bom foi no salão maior, junto a uma grande
lareira. Havia dois retratos separados, um homem e uma mulher, na parede do
fundo.
“Os seus pais?”perguntei.
“Não. Os meus pais estão nos caixilhos. Os do retrato não
sei quem são. Nem interessa”, atirou Dom Deusdado. “Belos caixilhos, não acha?
Foram feitos das cerejeiras que nasceram na sua campa”.
Dom Deusado descreveu então outros objectos: a mesa era
feita do seu avô paterno; havia uma arca de teca “nascida de um tio que fora
militar no Cebu”. E as cadeiras em que nos sentávamos eram talhadas “em vários
bastardos nascidos no quintal”.
Não resisto a fazer a pergunta inevitável: não tinha filhos?
“Tive um”, Dom Deusdado rodou o balão de conhaque fazendo
dançar nele as chamas da lareira.
“Morreu no parto. Levou com ele a Anna. A mãe. A minha
mulher. A medicina não estava tão evoluída naquele tempo…”
Aconteceu num dia de Ano Novo, contou, tragando mais um conhaque.
“Registei-o como Anno. Anno Domini. E, para responder à sua
pergunta seguinte: a árvore do Anno é frágil. Só dá para lenha. É aquela que arde
na lareira, todos os anos, do Natal até aos Reis. Gosto de ver as chamas nesta
quadra”.
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In “Público – Xis”
30.12.2007
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